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Rita Marta

O Inimigo




“Perante o flagelo… perante o escândalo da morte anunciada, iminente e cega, as comunidades têm uma tendência irreprimível para se unir no medo…” Bernard-Henri Levy (2020)


Naquela manhã de final de Agosto, dirigi-me à parafarmácia habitual, na tentativa de, pela terceira vez, furar as orelhas das minhas filhas (nestas tenras idades, mal se tiram os brincos, logo as orelhas repõem o que falta!). Perante o comentário firme e inamovível da farmacêutica – “já não furamos as orelhas” -, resolvi ingenuamente (ou por teimosia, ou curiosidade) perguntar porquê, e logo ela, de olhar indignado e ar de “beata”, me responde: “Não podemos, por tudo o que está a acontecer no mundo…”


Aquele comentário irritou-me, pelo tom moralista, raiado do politicamente correto, semelhante ao que se sente quando se come uma sardinha em frente a um Vegan… Senti que a minha atitude mais despreocupada punha em causa uma certa “tranquilidade” que o “terrível que está a acontecer no mundo” parecia dar àquela pessoa… Um sentido? Uma compreensão de todos os males? Um inimigo designado?


Tenho conversado com muitas pessoas sobre este mundo que parece ter enlouquecido numa “pandemia do medo” e sobre as medidas drásticas que se têm tomado à custa dela: cancelamento de consultas, exames e cirurgias, mesmo em serviços hospitalares praticamente sem doentes Covid internados; ausência de visitas em lares e hospitais; pessoas a morrerem sozinhas; crianças retiradas aos pais enviadas para centros de acolhimento que, apesar de testarem negativo, são obrigadas a ficar 14 dias isoladas, sem poderem sair, nem brincar; bebés arrancados do colo da mãe à nascença porque o pai testou positivo, apesar de a mãe estar negativa…


O que está a acontecer neste mundo pergunta-se também Bernard-Henri Levy. Porquê esta reação excessiva e enlouquecida de todo o mundo ocidental, a ponto de a liberdade, a economia, as outras doenças, a educação, as necessidades psíquicas e sociais, ficarem soterradas por este medo?

Leituras e conversas com amigos, apontam hipóteses compreensivas diversas: históricas – a Europa vive em paz desde a II Grande Guerra, as pessoas não estavam habituadas a grandes crises nem ao perigo de morte; ou filosóficas – no mundo ocidental pós-moderno construiu-se a ilusão de que tudo é controlável, de que o avanço na medicina tinha sido capaz de erradicar as grandes epidemias, quase como se o homem estivesse a caminho de se tornar imortal (Harari, 2018).


Mas dentro de mim estas explicações permanecem insuficientes. Pergunto-me se a existência deste inimigo comum não tem também uma função psicológica organizadora, na lógica do bode expiatório onde são projetadas todas as ameaças, tornando-se o único detentor do perigo. Ao designar-se um inimigo tudo se torna mais fácil, deixa de ser um fantasma inominável, inconsciente e incontrolável, sabemos onde ele está e o que fazer para nos defendermos dele.


Algo de semelhante encontramos no funcionamento obsessivo, onde uma preocupação constante e um ritual repetido são mantidos (por exemplo, a preocupação com a limpeza e os rituais de lavar as mãos inúmeras vezes), apesar do sofrimento que trazem, como forma de controlar outras questões internas mais dolorosas ou desorganizadoras. Também o medo excessivo do Covid traz sofrimento, os rituais assépticos são uma chatice, e a privação de liberdade aborrecida, mas podem ajudar a controlar um sofrimento maior, interno e desconhecido, mais difícil de enfrentar. O sintoma adquire assim uma função organizadora, sendo que no caso desta pandemia, ele se torna socialmente aceitável.

Ou na lógica do funcionamento hipocondríaco, onde um fantasma psíquico é colocado na preocupação com as doenças físicas, desviando o olhar de outras ameaças internas…


Socialmente, esta tendência generalizada para eleger um inimigo responsável por todos os males, e uma forma de o combater, têm vindo já a fazer-se sentir nas últimas décadas, por exemplo, na obsessão com a alimentação saudável (vegan, sem glúten, etc…), numa postura rígida que não aceita questionamentos. Quando a preocupação principal é comer alface em vez de “Carne de Porco à Alentejana”, facilmente se afastam do pensamento outras conflitualidades…


Byung Chil-Han foi muito criticado no início desta pandemia por ter anteriormente defendido que, a partir do século XXI, o “paradigma neuronal” – ligado a doenças como a depressão, as hiperatividades, o burnout ou a personalidade borderline – resultante de uma sociedade competitiva (narcisista e “autofágica”, segundo Jappe, 2019), globalizada, e amoralista, que valoriza acima de tudo o sucesso individual, tinha vindo substituir o “paradigma imunológico” anterior – as grandes epidemias (e guerras) do século passado -, no qual o inimigo se situaria fora de nós, desempenhando assim uma função psíquica organizadora na separação eu/outro, familiar/estranho.


Estaremos perante um novo “paradigma imunológico” ou terá o homem do século XXI “utilizado” esta pandemia (e outras estarão para vir!) a nível psicológico e filosófico, como escapatória para um sofrimento “neuronal” – a insatisfação consigo mesmo, o sentimento de incapacidade, ou mesmo de perda de identidade num mundo cada vez mais globalizado, no qual, ao contrário do século XIX-XX, se valoriza mais o sucesso individual do que a moral e as ideologias?


Terá o homem da Era Covid “eleito” este vírus como o grande inimigo, dando “imunidade” contra outros medos, ao “confiná-los” numa só ameaça, externa e com regras de combate definidas?…

Que espaço deixa este mundo altamente tecnológico e virtual, veloz e competitivo, para a vulnerabilidade psíquica, para dar atenção à conflitualidade interna, medos, tristezas, inseguranças? O Covid dá um sentido, um caminho, um inimigo exterior a combater e “vai ficar tudo bem”…

Imagem: “Adamastor”, Jorge Colaço, 1907 (painel de azulejos no Hotel do Buçaco)


Imagem: "Adamastor" de Jorge Colaço (1868-1942) - painel de azulejos no Hotel do Buçaco


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