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Patrística ou escolástica?



Há quem diga que o período que nos ensinaram a chamar de Renascimento foi afinal um segundo renascimento. O primeiro terá ocorrido no séc. XII, o qual deu ao mundo a universidade, a arquitectura gótica e uma nova pedagogia que chegou através do islão, a escolástica. Esta contrastava com a pedagogia patrística, na medida em que consistia num método de fazer perguntas e dar respostas, em vez de simplesmente citar autoridades há muito falecidas, os chamados padres da igreja. Distinguiam-se também noutro aspecto, o da relação com a ciência. A patrística preferia Platão e o seu dualismo, que valorizava o mundo das ideias sobre o mundo da matéria. Já a escolástica preferia Aristóteles, que representava o melhor da ciência daquele tempo e tinha um pensamento não dualista. Serve esta introdução para levantar a questão: seguirá a psicanálise um modelo patrístico ou escolástico?


Não é raro encontrarmos em trabalhos de psicanálise uma tendência para fundamentar a argumentação em citações daqueles que poderíamos chamar os “padres da psicanálise”. Um trabalho pode até ser criticado em função das citações que fez ou não fez, e não pelas questões que levantou e as respostas que encontrou.

Além disso, parece haver por vezes uma atitude de falta de interesse pela realidade externa que evoca a antipatia platónica pela matéria. Só é psicanalítico o discurso que versa sobre a realidade interna. Se o discurso se abre ao mundo externo, a dados empíricos ou a outros campos do saber pode surgir o dictum “this is no longer psychoanalysis”, o qual soa a excomunhão. Acrescentemos o abuso de uma linguagem hermética, abstracta e pode ter-se a sensação de estarmos perante uma língua de anjos que descreve realidades espirituais e não terrenas.


Curiosamente, os pensadores fundamentais da psicanálise não eram meros citadores, nem avessos a outros saberes. E distinguiram-se pela capacidade de levantar novas perguntas e ousar respostas originais..

Freud escrevia com uma preocupação de expor o seu pensamento de modo a tornar claro os vários passos do seu raciocínio. Quando citava, e fê-lo em abundância, em diálogo com as ciências e humanidades do seu tempo, não era como quem se dobra perante uma autoridade, mas como quem identifica uma convergência de opiniões. Também é sabido que os seus interesses iam muito além do que se passava no seu consultório: escreveu sobre arte, religião, antropologia, sociologia, biologia, literatura, fenómenos de grupo, a guerra, etc.

 Já Lacan retornou a Freud mas ao mesmo tempo mergulhou noutras disciplinas (filosofia, linguística, estruturalismo, física, etc.) para dar à luz um pensamento próprio. Bion fez uma leitura atenta de Freud e de Klein, mas inspirou-se na matemática, epistemologia e até na história (a sua formação inicial) para criar o seu modo de pensar psicanalítico. Temos também Winnicott que se distingue por raramente citar as fontes que o influenciaram, sendo a sua escrita a de alguém que se aventura em pensar pela sua própria cabeça. E não esqueçamos Ogden que fez uma leitura aprofundada dos principais autores psicanalíticos sem perder a sua voz única na psicanálise. E poderíamos citar muitos outros.

É sabido que os seguidores são muitas vezes mais papistas que o papa. Encontramos quem se apresente como fiel guardião e intérprete do “verdadeiro” pensamento do seu autor de eleição. E podemos ver grupos organizarem-se à volta de um autor como quem está contra outro: bionianos contra freudianos, winnicotianos contra kleinianos e por aí fora. As clivagens podem ser grandes e só ultrapassáveis se houver lugar para um movimento ecuménico em psicanálise.


Será desejável que o foco no mundo interno não se traduza em risco de esquecer algo elementar: o inconsciente e o intrapsíquico constituem-se a partir de uma teia de relações com um vasto universo. Este inclui aquele e não o contrário. Por isso a psicanálise nunca poderá desinteressar-se do que rodeia o humano, até porque somos seres fundamentalmente interdependentes.


Felizmente o espírito livre da psicanálise sobrevive e sopra para além dos silos. Exemplo disso foi a participação de Otto Kernberg num colóquio recente da SPP. Aí pudemos observar alguém que apesar dos seus 95 anos, continua aberto ao novo e ao que vem de fora da psicanálise. Pudemos perceber que está atento aos contributos das neurociências e que vê neles não só uma possibilidade de convergência e de confirmação de hipóteses psicanalíticas, mas também um potencial transformador da própria psicanálise. De certo modo não é surpresa. Ou não fosse ele quem, enquanto presidente da IPA, se opôs às tendências padronizadoras da formação psicanalítica num artigo cheio de ironia: “Thirty methods to destroy the creativity of psychoanalytic candidates”(International Journal of Psychoanalysis 77:1031-1041).


Imagem: Christine Kozak (Unsplash)

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