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Vivências Psicanalíticas



A Psicanálise é uma teoria sobre a dimensão psíquica do ser humano, bem como um método de investigação e uma forma de tratamento. O processo de investigação psicanalítico desenvolve-se na e a partir da prática clínica. O psicanalista Seabra Diniz defende que “…a clínica nunca será uma aplicação direta da teoria psicanalítica e inteiramente explicada por ela, o que abre um espaço à criatividade individual, que faz a originalidade de cada psicanalista.


Estamos habituados a ter acesso a relatos de psicanalistas sobre as suas experiências clínicas como analistas, em livros, artigos e congressos. Menos comum é escutarmos o paciente e a sua experiência de análise.

 

Fazer uma análise, com várias sessões por semana, não é um processo fácil, é preciso alguma coragem para o paciente ir criando um compromisso autêntico com uma pessoa desconhecida, através do qual vai desembrulhando o seu mundo psíquico. Como dizia o Psicanalista Francisco Alvim, “a relação terapêutica é sempre tecida na trama do objecto traumático”. E claro, cada análise é uma experiência profundamente intersubjetiva e única.


A forma como um paciente lida com o quadro de uma análise é um ponto importante da experiência terapêutica. Michael Parsons, um reputado psicanalista inglês, refere que os pacientes variam na forma como se relacionam com o processo. Dá o exemplo de um jovem paciente que exclamou de repente, Ah Sim! Agora compreendo… a psicanálise não foi feita para ser útil! Ele não quis dizer que a psicanálise era inútil, mas que o que fazíamos juntos não estava definido em termos de metas ou objetivos.” Outro seu paciente disse: “Há um processo em ação aqui. Não há dúvida disso. De repente, ficou claro que, afinal, estava a acontecer uma análise entre nós.

Um dia ouvi um ex-paciente analítico dizer: “Não acho que meu analista fosse excelente, mas o processo foi incrível”.

 

Ondina Pereira, uma psicanalista brasileira, fez um estudo através de entrevistas realizadas a analisandos, através das quais procurou captar o vivido. Algumas dos relatos que encontrou foram:

 

…o divã tornou-se para mim aquilo que ele é: o privilégio de ter à disposição um lugar mágico, em que esqueço o lado útil da vida e começo a falar de coisas que pareciam estar encantadas. Eu embarco nesse encantamento, no prazer e na dor de conseguir desvendar o enigma de um sonho.

 

…eu me permitia algo que não me permitia fora, que era uma certa fragmentação do meu mundo.

 

…é um espaço privilegiado, um palco todo meu, onde realizo, mesmo sem talento, meu sonho de ser artista, quer dizer, de ser adulta…é o espaço abissal da subjetividade.

 

…naquele lugar eu saio da prevalência do automatismo, do discurso habitual, rompendo com um certo tipo de relação com a vida e instalando uma outra, em que busco em mim, em minhas lembranças mais remotas, alguma base para uma experiência de diferenciação do habitual, para uma experiência singular.

 

…o divã é uma piscina onde a gente nada de costas, mas nem tudo é azul.

 

A partir da análise dos vários depoimentos, Ondina Pereira reforça a ideia da análise permitir uma existência contrária à do automatismo quotidiano. Uma existência similar a uma “atividade filosófica, se essa atividade for compreendida como o exercício da dúvida, da inquietação, da incerteza, em suma, como o questionamento de todas as coisas que parecem fundadas.” Talvez a interiorização de uma atitude que permita suportar as dores psíquicas, bem como dúvidas e incertezas inerentes à vida. O motivo para fazer uma análise tem sempre um sofrimento subjacente, mesmo que não seja consciente ou verbalizado.

 

Para Rita Marta, Psicanalista, “foi a experiência de ser contida, acolhida naquele divã vários dias por semana, perante uma escuta inteiramente disponível para ouvir os meus lados mais doridos. Uma escuta que me dava a forma - como uma escultura que se vai moldando a dois - que eu não encontrava sozinha, consequência de acontecimentos de vida anteriores que me tinham tornado uma sobrevivente mais do que uma existente… 


E tudo mudou, na forma de sentir, a um nível muito profundo, uma outra forma de estar no mundo no sentido existencialista (“Dasein” de Heidegger: Ser-aí).  

Como dizer? Sem ter deixado de ser quem era, transformei aquilo que me impedia de Ser… Retirei o pó que me cobria, e a tensão que me oprimia. 

 

Nesse tempo lento e repetido (dos mesmos dias da semana, nas mesmas horas) - assim como também o bebé se desenvolve na constância emocional da relação com o objeto primário, ao ritmo das rotinas que se repetem (das mamadas, do banho, do sono...) - cria-se um ritmo, uma constância, a partir da qual algo de novo pode surgir.

 

E, magicamente, nesse processo profundamente vivenciado (consciente e inconscientemente), vamos guardando cá dentro o Analista (a relação com o analista) e o Ser Analista (o processo analítico). É isto que trazemos para a relação clínica com os pacientes, o Ser-Analista entrelaçado com o Ser-Pessoa". 

 

No divã psicanalítico sonha-se o passado e imagina-se o futuro. Uma entrada num “Ano Novo” construída neste vai-e-vem entre passado e futuro, entre dentro e fora. A dois.

 

Tomás Miguez, Psicanalista, iniciou a sua primeira análise aos vinte e dois anos:  “Foi-me proposto fazer 4 sessões por semana, que aceitei sem saber o que isso significava. Recebi com agrado a ideia de me deitar num divã e dizer o que me viesse à cabeça. Quando iniciei a minha primeira análise, familiares e amigos pensaram que o fazia por ser psicólogo, mas na verdade fi-lo porque me sentia perdido e deprimido. Penso que é o melhor motivo para procurar uma análise.

Os primeiros tempos foram bastante fraturantes, já que comecei a falar de dores das quais não tinha consciência e a colocar em causa crenças inquestionáveis. Depois de um período de grande turbulência, apaziguei-me e fui-me instalando no divã. Não creio que uma análise possa ser uma experiência suave, sem momentos perturbadores e angustiantes.

Tratava a minha analista pelo nome próprio, de forma a sentir-me mais próximo, derrubando formalidades. Sentia-me bem acolhido e reconhecia o seu interesse e a sua disponibilidade para estar comigo. Mesmo quando me transmitia ideias que eu não entendia, sentia que era uma tentativa sua para me compreender. As suas falhas também me ajudaram a ir desidealizando a psicanálise. Afinal, não me ía tornar num "super-homem", mas um homem mais tranquilo e satisfeito comigo próprio, tolerando sentir-me vulnerável e inseguro, capaz de me interrogar sem exigir respostas imediatas. A análise fez-me aceitar que a vida terá sempre alguns conflitos e isso não é necessariamente mau. Também com o desenrolar da análise, foi-me possível ir criando momentos de humor que me induziram a brincar e a relaxar.

Depois de alguns anos, vários amigos ficavam surpreendidos por eu ainda ter assuntos para falar e ainda por cima com 4 sessões por semana. A verdade é que isso nunca foi um problema. Mesmo falando de aspetos reais e concretos da minha vida, ía encontrando o que sentia, o que fantasiava, o que me inquietava. Por vezes procurava explicar aos meus amigos o que era fazer análise, mas sentia que ficava muito aquém da minha experiência. A experiência da análise foi-se interiorizando como uma vivência de olhar para dentro, longe de um exercício meramente intelectual.


Ao longo da análise senti diversas mudanças em mim, com reflexos na minha vida externa. Alguns momentos transformadores deram-se fora da sala de análise. Não me detive muito a pensar muito nas causas dessas mudanças. Aceitei que não precisava de as encontrar. Aliás, a experiência da análise fez-me acreditar que o mais importante não é saber as causas. Mesmo reconhecendo que não sei o que é o mais importante.


A propósito das causas, o psicanalista Meltzer (1986) dizia que “um dos benefícios fundamentais de uma análise é um movimento desde uma atitude causal/explicativa, atribuidora de culpas, a uma atitude que busca compreender e aceitar a incerteza inerente à infinita complexidade do desenvolvimento humano e das relações pessoais.”


A análise também convocou vários paradoxos ligados ao funcionamento psíquico do ser humano. Por vezes senti que era o único paciente da minha analista, sabendo que na realidade não o era. Também uma análise não se define nem se estrutura tendo em conta objetivos. Mas na verdade tanto o paciente como o analista têm em mente alguns alvos. A experiência da análise mostrou-me que, apesar de não poder alterar o meu passado, posso alterar o que sinto com o meu passado e isto tem um impacto muito forte na forma como me sinto e me relaciono com os outros.

A análise fez-me sentir que o autoconhecimento não é um conhecimento objetivo. Talvez tenha mais a ver com a experiência da pessoa tolerar um diálogo com o seu inconsciente e por vezes contatar com partes suas menos “simpáticas”.


Fazer o luto de uma completude narcísica e suportar a alteridade. Andre Green dizia que, no fim de algumas análises, a ideia de que nunca seremos capazes de tornar o outro real uma propriedade nossa é atualizada. O outro será sempre o outro, acrescenta.


Vivi com entusiasmo e algum temor o fim da análise. Senti que valeu a pena e que ficaram dentro de mim vivências intensas, profundamente humanas. Depois de terminar, percebi que o ambiente da análise era o que me tocava mais. Uma experiência para além das palavras. Não que estas não fossem importantes, mas alguns silêncios eram mais envolventes e permitiam um sentir mais profundo. Foi muito importante sentir que a minha analista gostava de estar comigo.


Como psicanalista, revejo-me nas palavras de Antonino Ferro quando diz que Eu acredito que é fundamental uma boa análise do analista. E que seja uma análise realmente profunda. E acredito, também, que seja importante que o analista não pense em ter se analisado de uma vez por todas, mas que possa continuar sempre um trabalho de autoanálise, todas as vezes que for necessário. Na vida profissional e na vida pessoal.


A análise é um encontro, que no dizer do poeta António Ramos Rosa é:

 

O que é um encontro 

breve e interminável sem um adeus final 

um encontro é uma viagem fora do mundo 

no mundo que nunca é verdadeiramente real 

na fantasia ansiosa das palavras vibrantes 

nunca é o que é 

entre

o que é e não é 

imaginária e vocálica 

fora da sintaxe convencional 

no interior de uma galáxia do vento 

no espaço branco de uma alegria sem termo 

no ar das palavras na respiração de uma laranja 

 

Imagem: Pablo Picasso "Mulher nua na oficina"

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