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Uma valsa a Dois Tempos: depois do Inverno virá sempre a Primavera

Jacques Brel cantava La Valse à Mille Temps (1959). Entoava amorosamente os vários compassos da vida.

Hoje parece que dançamos uma valsa a dois tempos: um compasso de tempo perdido e um outro onde a vida se mantém, desenvolve, irremediavelmente ininterrupta.

A solidariedade, como o amor, como muitas outras vivências emocionais humanas, não é necessariamente espontânea. A grande percentagem é aprendida, criada, desenvolvida. Não no sentido hipócrita ou falso, mas porque se radica no conhecimento de nós próprios e dos outros ao longo das situações que a vida nos propõe. E na descoberta de que as experiências de uns pertencem em larga medida às dos outros porque partilhamos algo comum que é sermos humanos.

A incerteza do momento tem-me questionado. Para além do tédio e do horizonte sem oásis à vista, pergunto-me se este cansaço não adivinha o medo de um mundo alterado onde subtilmente se desenham linhas de prisão mental. Durante este tempo de pandemia Mandela tem sido uma referência de alguém que conseguiu ser livre estando encarcerado. Mas esta situação é diferente: ele sabia que o mundo lá fora continuava basicamente o mesmo, nós não; ele sabia quem era e o que queria. Nós sabemos? O medo da morte, a desilusão com os governantes, o descrédito no vizinho são a base para um outro mundo onde as relações próximas se vão reaver mas a mentalidade será possivelmente muito diferente. O conceito de democracia está em discussão em quase todo o mundo; liberdade de expressão, direito de existir, direito à afirmação pessoal e de grupo. Já começou há muitos anos, como resposta directa a fundamentalismos e como assumpção do direito a ser e pensar de forma diferente – lembremos Charlie Hebdo, entre tantos outros.

O direito ao trabalho é um capítulo à parte porque se inclui no direito a uma remuneração adequada, a uma segurança do seu posto de trabalho e a limites de exploração. Tudo isto tende a ser visto como uma discussão de esquerda radical, conceito vazio muito em voga.

Mas esta questão pandémica traz novas situações: Quando finalizar vamos conseguir reaver as pessoas que anteriormente tínhamos no nosso mundo? As vivas, sim. Vamos encontrar um mundo mais solidário, tolerante e respeitador do ser humano? Não me parece. A importância do estatuto será tanto mais importante quanto a imposição de restrições à liberdade de expressão seja limitada? Sim, é o que parece. O ódio e a selvajaria, cujas sementes já fortificaram em alguns sectores, vão expandir-se englobando-nos um pouco a todos nós? Em actos simples de pequenas ditaduras institucionais? Temo que já existam e que apenas se vão expandir.

Retomemos Jacques Brel e a sua valsa rodopiante numa Paris exultante, viva e fascinante dos anos 60. Se a história se repete, a valsa também se repetirá e é essa ideia que me alenta e faz retomar a esperança de que um dia poderemos voltar a dançar a um, dois, três e quatro compassos porque um dos índices de regeneração social é o desenvolvimento das artes, da cultura, da educação e o nascimento de crianças.

Entretanto…

Au premier temps de la valse Toute seule tu souris déjà Au premier temps de la valse Je suis seul mais je t’aperçois

(…)

Une valse à mille temps Offre seule aux amants Trois cent trente-trois fois le temps De bâtir un roman

Imagem: fotografia de Pedro Cabral Fernandes

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