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Maria Teresa Sá [Psicanalista]

PAZ, SHALOM, SALAM


As guerras, com o seu cortejo de mortes, fome e terríveis sofrimentos físicos e psíquicos, que se prolongam pelo tempo, são a realidade quotidiana de milhões de pessoas no mundo. Habito, por ora, uma terra protegida. O meu contacto com as catástrofes é longínquo e mediado pelas notícias e pelos écrans, que me trazem aos dias o desassossego, a aflição e a tristeza, ao mesmo tempo que a urgência do pensamento, da palavra e de acções que possam juntar vontades, reforçar laços e vínculos.

Procuro proteger a maior parte do meu dia das notícias do mundo, para que me possa dedicar com a suficiente concentração, tranquilidade e disponibilidade ao acolhimento das notícias que os meus pacientes trazem de si e do seu mundo interior. É quando o dia termina que os ruídos do mundo me tocam à porta e os deixo entrar. No último mês têm sido muitos. Não é a primeira vez que diante de situações de política nacional ou internacional me deparo com posições diferentes que motivam discussões em que participo, com argumentações mais ou menos formadas e informadas, oscilando entre racionalidade e emoções. Estes tempos que vivemos trouxeram-me, porém, uma inquietação que está para além destas diferenças e dos terríveis dramas humanos e humanitários a que assistimos.

É possível que quem defende os direitos do Povo da Palestina possa ser insensível a uma mulher grávida esventrada e a um bebé assassinado num Kibbutz? Que se recuse a defender a libertação de crianças feitas reféns pelo Hamas?

É possível que quem defende o direito do Povo de Israel à sua defesa e a combater o terrorismo possa ficar insensível à imagem de crianças nas ruas de uma Gaza bombardeada e a bebés em incubadoras que morrem por falta de cuidados médicos?

Sim, é possível.

Vêm-me as palavras de Rainer Maria Rilke em Os Cadernos de Malte Laurids Brigge: “Porém, se tudo isto é possível, se tem mesmo só uma aparência de possibilidade, então, por tudo o que há no mundo, é preciso que aconteça alguma coisa. O primeiro indivíduo, o que teve estes pensamentos inquietantes, deve começar a fazer alguma coisa do que se perdeu; mesmo que seja um qualquer, certamente o menos indicado: mais nenhum há que o possa fazer”

Procuro pensamentos.

Regresso ao tempo de uma ferida, de como quando ela é muito profunda e primária pode tornar o sujeito insensível ao sofrimento, ao seu próprio sofrimento e ao do Outro, estratégia extrema de sobrevivência à beira do abismo, desligamento das pulsões de vida e de agressão, com despreendimento e proliferação de núcleos onde se enredam a violência, o medo, o desamparo e o desespero, levando à utilização de defesas muito primitivas contra a dor, sob a forma de autodestruição ou agindo os conflitos e a destrutividade no exterior.

Mas se este pensamento me pode ajudar a colocar hipóteses de compreensibilidade sobre o que se possa passar com quem está ou esteve no centro de um vulcão em erupção, não me permite entendimento sobre o que se possa estar a passar numa terra protegida da catástrofe, onde a cegueira para reconhecer e ressoar o sofrimento de uma mulher assassinada, de uma criança e de um bebé, parece invadir o coração de alguns tão próximos.

É a palavra cegueira que me traz um livro que li há uns anos e que guardei como um poderoso acompanhante, uma alegoria para explorar a complexidade dos fenómenos intrapsíquicos e interpsíquicos de apagamento do Outro.

Nas páginas do Ensaio Sobre a Cegueira pude ir acompanhando como a perda da capacidade de Ver o Outro conduz à desumanização. Uma doença misteriosa, uma cegueira branca e sem causa, toma subitamente conta de um lugar e de todos os seus habitantes, à excepção de uma mulher que se ocupa dos doentes, encarcerados num antigo asilo psiquiátrico. Os humanos já não reconhecem os seus semelhantes, a sua cegueira fê-los perder o contacto com a sua humanidade e a do Outro. Todo o tipo de proximidade ou de similitude é evitada e a rejeição do Outro vai conduzindo a uma perversão das relações humanas. Guardiã do humano, esta mulher procura pôr um travão à barbárie de roubos, abusos, violações, violências e crimes vários, que se vão sucedendo em consequência da cegueira colectiva. Os personagens desta história não têm nome, como se a sua subjectividade estivesse diluída, aniquilada. A ausência de pensamento, metáfora da cegueira branca, como lembra Saramago no seu discurso ao receber o prémio Nobel, pode cegar a razão humana.

Sou então conduzida a Hanna Arendt, que me ajuda a pensar este apagamento do Outro, o eclipse da razão e as suas consequências, a partir do prisma da obediência nos regimes totalitários: Eichmann em Jerusalém, um relato sobre a banalidade do mal (1963). Em Eichmann a obediência encontra-se estreitamente ligada a essa espécie de embrutecimento e incapacidade de pensar, à recusa radical de pensar o Outro.

A possibilidade de pensar a condição de um outro ser humano, que designamos como empatia está na base das relações intersubjetivas e do laço social. A sua impossibilidade pode dar lugar à degradação de uma parte da humanidade, excluindo-a do humano. Como sugeriu Primo Levi (1947), para cometer actos inumanos é preciso colocar uma distância absoluta entre Si e o Outro, tratando o Outro como não pertencendo à mesma espécie. A destruição do Outro tem como pré-condição este processo preliminar de reificação, que torna o Outro não reconhecível como semelhante, reduzindo assim a possibilidade de o ver, de ressoar e partilhar o seu sofrimento. A supressão deste laço empático põe em risco os laços entre humanos e pode fazer deslizar o sujeito para o mal. O pensamento elaborativo é então apagado através de um movimento expulsivo do sofrimento e da conflitualidade psíquica que o Outro poderia suscitar em nós, anulando a alteridade, a solicitude e a responsabilidade.

A ausência de empatia corre sempre ao lado da submissão às ideologias autoritárias e do pensamento de massas, lugares onde a dialética do Eu-Outro é abolida e prima a lógica do pensamento único. No sentido inverso, a empatia, através do acesso à alteridade do Outro, implica a manutenção de um espaço de interrogação aberto, inconclusivo e vivo, que comporta a dúvida e o livre pensamento, a responsabilidade perante todo o ser que pensa e vive numa comunidade humana.

A minha inquietação, nesta terra protegida das catástrofes, com esta ausência de empatia, com quem não estremece com a dor do Outro, é o sobressalto com o aprisionamento do pensamento e da razão, com a Cegueira Branca.


O SONHO COMO REALIZAÇÃO DE UM DESEJO

Há um mês fiz este sonho, de que tomei nota e que aqui deixo:

Eu estava a falar numa Assembleia da ONU (Organização das Nações Unidas), acompanhada dos meus dois filhos (no sonho, ainda pequenos). Abraçava de um dos lados o meu filho mais novo, que trazia ao pescoço um Keffieh ( lenço palestino, que tenho na realidade, que o meu marido trouxe há muitos anos de uns campos do CISV - Children’s International Summer Villages - Organização Internacional de Jovens, que teve início a seguir à segunda guerra mundial, por iniciativa de uma psicóloga americana chamada Doris Allen, com o objectivo de promover a educação para a Paz, através do convívio e criação de laços entre crianças oriundas dos mais diversos países, a começar pelos que estiveram envolvidos neste conflito). Do outro lado, abraçava o meu filho mais velho, que se chama David. Não me lembro do que dizia, sei que estava muito concentrada, que havia muito silêncio, que a sala era grande e plana, aberta sobre uma imensa planície verde, e que todos prestavam muita atenção.


Depois, quando acordei, veio-me à memória um poema de Sophia de Mello Breyner Andresen:


Apesar das ruinas e da morte

Onde sempre acabou cada ilusão

A força dos meus sonhos é tão forte

Que de tudo renasce a exaltação

E nunca minhas mãos ficam vazias.


PAZ, SHALOM, SALAM


Imagem: A dança dos Jovens, Pablo Picasso, 1981

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