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Uma breve nota sobre Resiliência




O conceito de resiliência, proveniente da física, tem vindo a ser explorado nas últimas décadas no campo da psiquiatria do desenvolvimento infantil, encontrando-se intimamente ligado ao conceito de vulnerabilidade. Na área da investigação, estudos têm surgido ligados à exposição a situações extremas observadas em crianças deslocadas, refugiadas, órfãs, separadas dos seus pais pela morte ou pela desorganização social. O conceito indica que mesmo o mais sensível dos organismos, quando submetido a severos ambientes de violência e destruição, pode encontrar mecanismos intrínsecos que o ajudem a tolerar e também a adaptar-se, resistindo e sobrevivendo. Sabemos, no entanto, que tais experiências deixarão marcas psíquicas indeléveis.

Em Fevereiro de 1944, Primo Levi, um químico italiano judeu, foi preso e enviado para Auschwitz, um dos campos de extermínio nazis, saindo onze meses depois como um dos poucos sobreviventes. O seu pungente testemunho sobre a sua experiência, potencialmente devastadora, encontra-se presente em vários livros, cuja escrita terá servido como espaço-continente no sentido de compreender/conter a angústia de morte à qual sentira que fora submetido. Ao longo da sua obra, Levi descreve de um modo cru e brutal episódios que vivera, mas faz alusão sobretudo ao modo como o ser humano se sentira confrontado com experiências limite, na iminência da morte. A dada altura diz: existem entre os homens duas classes particularmente bem distintas: os que se salvam e os que sucumbem. (1)

Na clínica é comum encontrar pessoas que, dada a sua história de eventos passados, carregam as suas feridas, os seus traumas, muitas vezes mantidos inacessíveis. Nesses caminhos tortuosos e complexos que são os processos analíticos, confrontamo-nos com organizações psíquicas que, pela sua similitude, evocam campos de concentração internos onde partes do Eu jazem aprisionadas, e onde a esperança é mantida enclausurada, prevalecendo os mecanismos de repetição patológica. Nem sempre o que nos traz à tona, levando-nos a elaborar, construindo caminhos mais respiráveis, se prende apenas com o trabalho exigente do par analítico. Por vezes, vislumbramos ténues frestas de luz emanando dos confins de destroços e ruínas, tímidos rasgos de resiliência, fazendo crer que é preciso continuar, resistir e tolerar momentos de maior dor.

A realidade actual veio expor a vulnerabilidade humana, convocando o contacto com o traumático, obrigando-nos a reflectir sobre o que tem sido exigido tolerar e conter no mundo interno de cada pessoa. Mesmo sendo uma realidade comum, transversalmente idêntica e trespassando fronteiras culturais e geográficas, não é sentida do mesmo modo por todos. Os recursos internos de que cada um dispõe são de qualidades diferentes, apresentando limitações, mesmo no que toca ao recurso à resiliência interna. A possibilidade ou inviabilidade do uso deste recurso leva a que, tal como Levi acreditava, uns se salvem enquanto outros sucumbem.

Em 1987, Primo Levi, sobrevivente do campo de extermínio nazi, morreu ao cair do alto dos 3 andares do seu prédio. Muito se especulou sobre aquela queda, embora, intimamente todos saibamos que Levi morrera 40 anos antes, naquele campo onde caíra para sempre. As capacidades de conter e tolerar revelam-se por vezes insuficientes em sistemas que sofreram já repetidos aprisionamentos e traumatismos irreparáveis. Tentar não sucumbir é manter viva a ideia de que a resiliência não existe per si, é preciso reunir esforços e, num árduo trabalho, procurá-la, alimentá-la e fortalecê-la. Sobreviver é um feito excepcional, mas permanecer ligado à vida, em todo o seu esplendor, eleva a condição humana.

(1) Primo Levi, Se Isto é um Homem, (1958/2013), pp. 94

Imagem: The Great Wave of Kanagawa (1830-1833), Katsushika Hokusai (Vários exemplares)

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