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Um Natal diferente

Quando entrei na “gruta” de cuidados intensivos neonatais tive a sensação de entrar num bloco operatório, onde é exigida uma série de cuidados de assepsia. São rituais que têm o propósito de proteger o bebé, os pais e os visitantes dos perigos, quer internos quer externos, tendo uma função de envelope físico e psíquico.

Lá dentro, deparei-me com mais de uma dezena de incubadoras. Os bebés mal se viam, porque eram minúsculos comparativamente aos tubos e aos monitores maiúsculos, que davam conta dos seus sinais vitais. 

O pai estava em pé, em adoração e a mãe sentada numa cadeirinha com as mãos unidas como se rezasse. Os dois num espaço mínimo, rodeados de máquinas, tocavam na incubadora como se acariciassem o  filho. José apresentou-me o filho muito pequenino e vermelho, deitado de lado, encaixado num envolvimento de tecido. Jesus estava a dormir. Maria disse-me que contava poder mudar-lhe a fralda, mas que a enfermeira já o fizera (sentia-se excluída do seu papel). José falava radiante da experiência de ter tido o Menino ao colo… foi uma sensação tão boa!…Maria, mais abatida, referia ter tido a mesma sensação. Era o pai que a continha, dizendo-lhe…é o nosso pequenino… Eros e Thanatos faziam parte do cenário.

Quando saí do hospital pensei no choque que sentira, como se não fosse suposto ver o que vi. Experimentei sentimentos de fusão e de separação. Identifiquei-me com o bebé indefeso e com os pais desprotegidos. Senti o vazio e a solidão extrema da mãe num tempo habitualmente associado a festa, comemoração ou felicidade. O bebé era muito mais pequeno do que eu imaginara, tinha a pele fina, quase transparente. Era um bebé prematuro. Vivi a angústia dos pais relativamente ao tema “vida e crescimento”, que faz parte da constelação da maternidade para os pais em geral, a questão de se sentirem capazes ou incapazes de manter o bebé vivo depois do nascimento, de lhe propiciarem a continuidade do desenvolvimento.

Na verdade, Maria anunciou-me todos os perigos e a sua solidão. Era-lhe intolerável pensar. Tinha dificuldade em imaginar o futuro do filho e de o envolver com ilusões antecipatórias. Duvidava dela própria, da sua capacidade de cuidar e ajudar o filho a crescer, da união de casal que sempre tivera, das qualidades e capacidades do bebé para se desenvolver e vencer os obstáculos.

Mais ou menos atemorizados, todos os pais precisam de se adaptar depois do nascimento de um filho. Precisam reformular a sua identidade, fazer o luto do filho ideal que tinham imaginado durante a gravidez, de modo a poder amar um bebé diferente das suas expectativas.

Observar significa compreender situações limite, que implicam mais do que uma boa empatia, implicam estarmos lá, num confronto permanente com as nossas próprias perdas.

Tornar-se mãe, pai, bebé e observadora pode levar a uma regressão ou uma fixação a anteriores períodos de vida, até aí clivados ou recalcados ou, ao contrário, pode ser a oportunidade para se progredir.

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