Escolhi o título de um filme de 2011 que, de forma ficcionada, ilustra as relações amigáveis e mais tarde conflituosas entre Freud e Jung, psiquiatra e psicanalista suíço e um dos primeiros discípulos de Freud, para uma breve reflexão sobre a especificidade e os imperativos da relação analítica, bem como sobre o significado da violação ética dos limites da relação analítica.
O filme mostra também a relação íntima e perigosa que se estabelecera entre Jung e uma das suas pacientes, Sabina Spielrein, e também o sofrimento que esta situação tinha trazido para ambas as partes. Sabina Spielrein, fez uma segunda análise com Freud e tornou-se psicanalista. Foi a primeira analista, não certamente por acaso, que concebeu o conceito de pulsão de morte, que Freud veio a aprofundar.
Vem esta análise a propósito das notícias recentes sobre o comportamento inapropriado de um psicanalista, reveladas no âmbito do movimento “Me Too”.
O livro “Sabina Spielrein entre Freud e Jung” de Aldo Carotenuto, baseado em documentos e cartas escritas pelos três protagonistas, ajuda-nos a compreender e a reflectir sobre as vicissitudes e dificuldades emocionais do encontro psicanalítico.
Só um contexto rigoroso, previamente definido e desenhado para o efeito, permite o estabelecimento da relação analítica cujas características não se podem confundir com qualquer outro tipo de relação. A relação analítica pode ser considerada como uma metáfora dos modelos relacionais da infância, sendo o analista visto com os olhos com que uma criança vê os pais, ou seja, como uma figura cuidadora, fiável, sabedora, protectora, mas também poderosa e fonte de frustração e insatisfação.
À luz da psicanálise, o erotismo e o amor pelo psicanalista, que se manifestam durante o tratamento, são entendidos como reedições do amor infantil pelas figuras parentais, que vão desde a necessidade de carinho, compreensão e afecto dos pais até às fantasias conscientes e inconscientes a que a sexualidade infantil dá forma. Recordo duas situações a que assisti com 2 meninas de 4 anos, em situações diferentes, e que às questões suscitadas pelos adultos respondiam de forma categórica, uma: “eu vou casar com o papá” e a outra, convicta, respondia: “o pai do meu ‘Nenuco’ é o António Manuel”, que na circunstância era o nome do pai. Em ambos os casos, elas colocavam-se no lugar das mães, mas não esperavam uma resposta sexual da parte do pai. Disputavam, sim, o seu carinho e atenção.
O mesmo se passa na relação analítica, o/a paciente que tem sentimentos amorosos em relação ao analista está a reviver as fantasias e as vicissitudes da sua sexualidade infantil, mesmo que as confunda com o desejo sexual adulto.
Ao analista cabe compreender o fenómeno e não confundir as mensagens, ou seja, não responder com a sua sexualidade adulta a uma manifestação em que o infantil determina o conteúdo da experiência emocional do analisando.
Ferenczi chamou “confusão de línguas” aos comportamentos sexuais dos adultos como respostas às manifestações do amor infantil e descreveu as suas catastróficas consequências psíquicas. E é essa confusão de línguas, de carácter incestuoso, que está subjacente aos comportamentos abusivos do psicanalista.
O psicanalista, para além de necessariamente ser um sujeito ético e responsável pelo outro, e em particular daquele que de algum modo emocionalmente depende de si e que lhe pediu ajuda, recebe toda uma formação que o prepara para compreender e interpretar o significado das diferentes manifestações da relação que o paciente estabelece consigo, ou seja, para reconhecer a transferência. Está também preparado, ou devia estar, para identificar em si próprio o impacto dessas mesmas manifestações e a reconhecer que, também ele, tem fragilidades e que a sua sexualidade infantil se pode manifestar nos seus sentimentos em relação a um determinado paciente, ou seja, estar preparado para reconhecer a sua contra-transferência e manter a sua posição de reserva e de guardião do processo analítico.
A análise pessoal que permite ao analista elaborar os seus próprios conflitos e a sua sexualidade infantil, bem como a formação profissional curricular e contínua, o contacto científico e clínico com os seus pares, são os elementos que garantem o exercício ético e competente da profissão.
É ao analista que cabe a responsabilidade de proteger o processo terapêutico, de garantir a continuidade do contrato que estabeleceu com o seu paciente, de ser o intérprete do seu discurso. Não pode ser o violador da sua confiança ou ser o agente prepotente e omnipotente que impõe a lei do incesto.
Não exercer essa responsabilidade é uma violação grave da ética psicanalítica, com consequências psíquicas e de vida devastadoras para os pacientes que sofrem os comportamentos abusivos por parte do analista e que a eles se submetem, como uma criança se submete a um adulto que exerce poder sobre ela, esmagando o seu sentido crítico, e sem força para se opor.
As Sociedades de Psicanálise da Associação Internacional de Psicanálise e a Sociedade Portuguesa de Psicanálise que dela faz parte, têm um Código de Ética e uma Comissão de Ética que definem e sancionam essa infracções, quando confirmadas, com a expulsão da sociedade a que o psicanalista pertence, sem prejuízo deste recorrer a ajuda psicológica.
Imagem: Balthus, detalhe da obra “O quarto” (1947-1948)
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