Observo-a. É uma rapariga bonita, os seus olhos sobressaem no rosto que parece esculpido a cinze, são grandes os olhos, com pestanas compridas, torneados por umas sobrancelhas que bem podiam ter sido desenhadas. Os cabelos compridos, ondulados, bem cuidados, são escuros num contraste que resulta muito agradável com a sua pele branca.
Numa postura que sinto algo ingénua e completamente despreocupada olha a sua própria imagem no ecrã do seu smartphone e vai fazendo com a câmara várias capturas.
Os ângulos são estudados, ensaiados.
Assim como os sorrisos, as expressões, a luz, as sombras, o cabelo. Às tantas brinca com uma madeixa de cabelo simulando com ele um bigode, faz um ar sério, e guarda mais essa imagem.
Não sabe que a observo.
Assalta-me a sensação de que a invado. Qual voyeur desrespeitador da intimidade alheia. E ao invés de a observar a ela, olho “para dentro”.
Afinal que penso eu sobre as SELFIES?
Figuras da contemporaneidade tão amplamente usadas por uns quanto “mal-amadas” por outros, são tantas vezes associadas a uma patologia narcísica, a um excesso de “Eu”, à exigência maniforme de apresentar uma vida bonita e feliz nas redes sociais. Fala-se de uma geração de millennials que cresceram sob a ditadura da felicidade, a famosa geração Z – aquela que nasceu num berço tecnológico e virtual, habitantes da World Wide Web, com ela tão familiarizados que a integram naturalmente nas suas interações pessoais. Mas também de todos os outros, de todas as gerações de “a” a “z” que foram cativados pelas possibilidades e potencialidades do mundo virtual. Um mundo com muitas regras implícitas entre as quais parecem estar:
Mostrar sempre o melhor de si. Dizer (mostrar) onde se está e com quem. Sorrir para a (própria) câmara.
Vejamos um outro lado.
Desde a antiguidade clássica se valida a importância da auto-imagem. O mito de narciso – que definha por não ser capaz de abandonar a sua imagem encantatória reflectida nas águas do lago – é o exemplo extremo de uma autorreferência arrogante e orgulhosa. Numa narrativa de caracter simbólico-imagético que desde a Grécia antiga alerta para o excesso de vaidade e insensibilidade à voz do outro.
Dos mitos podemos passar aos contos.
Quem não se recorda da intemporal fala “Espelho meu, Espelho meu, Há mulher mais bela do que eu?” à qual só seria admitida a resposta “Majestade, sois a mais bela deste reino!”?
Num e noutro exemplo, em histórias recontadas infinitamente, temos o culto da própria imagem que se constitui como única referência do valor do próprio que num processo de alheamento e evitamento do outro acaba por ter como consequência a aniquilação.
Mas temos também, na tradição oral e escrita, referências a outros processos.
No conto “O Patinho feio” temos uma outra abordagem à imagem. O frame do filme da Disney em que aparece a imagem distorcida do reflexo nas águas do lago ocorre-me de imediato. O patinho que de tão feio, tão diferente, não estando consciente da sua verdadeira identidade, parte destroçado para realizar um verdadeiro percurso iniciático, atravessar um difícil período de solidão e desventura, para se poder converter em si mesmo e reconhecer-se como cisne – mais uma vez ao ver a sua imagem reflectida. Como diz Andersen, para poder crescer segundo a sua verdadeira natureza, ver-se no espelho genuíno da sua própria autoimagem, onde poderá ver-se a si mesmo como belo, mas nunca orgulhoso.
O espelho, na forma de lago, de objeto, ou do olhar do outro, devolve uma imagem do próprio fundamental para a construção da identidade.
Sabendo que em alguns casos a excessiva utilização das selfies possa ser tida como preocupante, opto por destacar que também podem ter essa função, de descoberta do próprio, de estudo da autoimagem, de construção identitária. Podem ser uma outra forma de espelho, que devolve uma imagem do sujeito em permanente transformação e adaptação. Que permita a aceitação das mudanças, a descoberta do belo (enquanto experiência estética satisfatória), e uma conciliação com a própria imagem.
E ao contrário do defendido por alguns acredito que a selfie tem, para além desta possibilidade de reconciliação com o próprio, a potencialidade de traduzir o encontro com o outro. “Vamos tirar uma foto nossa” – o individuo integrado no grupo, ninguém fica de fora. Numa grande parte das selfies publicadas nas redes sociais há mais pessoas incluídas na imagem, o paradigma da “fotografia de grupo” foi modificado, deixou de ser uma imagem formal, estática e hierárquica, para passar a ser mais maleável e flexível, capaz de traduzir melhor a tela de relações no grupo.
Usemos a tecnologia, tiremos dela o melhor proveito, vivemos numa era digital, temos incontáveis recursos à disposição, porque não utilizá-los para descobrirmos e partilharmos quem somos!
Imagem: Selfie da autora
Nota do autor: Escolhi para ilustrar este texto uma “selfie” – estudar o ângulo, fazer o recorte, editar a cor – espelho da minha identidade (não só como analista). Não foi uma decisão imediata, mas à medida que escrevia senti-a como inevitável – partilhar o pensamento acompanhado da imagem, já que é disso que falamos.
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