Em 1982 Bruno Bettelheim publicou o livro “Freud and Man’s soul”, onde refletiu sobre a tradução da obra de Freud de alemão para inglês. Tendo crescido em Viena, no mesmo ambiente cultural de Freud, leu em primeiro lugar a obra deste em língua alemã. Após ter ido viver para os EUA, apercebeu-se de que a leitura de Freud em língua inglesa apresentava o que lhe parecia ser uma outra psicanálise.
Ao escrever em língua alemã, Freud usou uma linguagem corrente, de compreensão fácil e imediata, com termos simples retirados da experiência comum. Freud dirigia-se ao leitor de forma directa, falando da sua experiência ou da dos seus pacientes de um modo que convidava à auto observação. Recorreu abundantemente a exemplos pessoais, relatou sonhos, esquecimentos e lapsos, e expôs perante os seus leitores fantasias e desejos “inconfessáveis”. Fê-lo de um modo que convidava a olhar para o inconsciente. Ao falar dele, ou dos seus pacientes, Freud estava a falar de todos nós, da alma humana.
Quando a obra de Freud foi traduzida para inglês a opção foi no sentido oposto. Em vez da linguagem comum, foi dada ênfase ao jargão técnico e a termos gregos e latinos. Veja-se, por exemplo, como Freud escolheu para designar as várias regiões da psique pronomes que qualquer criança alemã conhece - “es” (equivalente ao “it” inglês), “ich” (eu) e “ubber-ich” (“por cima do eu”). Estes termos na tradução inglesa foram latinizados para “Id”, “ego” e “super-ego”, tornando-se logo mais opacos. Ou como, “besetzung”, termo comum que significa “ocupar” foi traduzido para “catexis”. Ou ainda, “schaulust”, que poderia ser traduzido como “o prazer sexual de olhar” foi transformado em “escopofilia”.
Outra tradução infeliz foi substituir "trieb" por “instinto”. Freud usou algumas vezes a palavra “instinct”, referindo-se ao instinto animal, inconsciente, inato e inalterável (padrão fixo de acção segundo K. Lorenz). Já "trieb", que poderia ser traduzido por “impulso” (ou “pulsão”), foi usado sempre no contexto humano. Ao escolher este termo Freud quis sublinhar que os impulsos humanos podem ser modificados de várias maneiras: podendo ser transformados no seu oposto, dirigidos para o próprio, suprimidos, sublimados, etc.
Bettelheim comenta que a má recepção da noção "pulsão de morte” se deve ao facto de ter sido traduzida em inglês para “instinto de morte”, conceito sem sentido. Freud nunca falou de instinto de morte mas de impulso para ações agressivas, destrutivas e autodestrutivas. Face às situações de guerra e crises institucionais que se abatem sobre nós, bem precisaríamos de uma maior compreensão deste conceito.
De todas as más traduções, Bettelheim destaca como a mais perniciosa o desaparecimento da palavra “alma” (“seele”, em alemão; "psique'', em grego; “soul”, em inglês) e a sua substituição pela palavra “mind” (mente).
Em língua alemã, a palavra “alma” (seele) não veicula exclusivamente conotações religiosas. Ela evoca a vida emocional, incluindo a vida fantasmática e o inconsciente. No fundo, refere-se ao que há de mais essencial e humano. Já a palavra “mind” tem conotações que evocam predominantemente a vida intelectual, racional e consciente.
Ora, Freud poderia ter usado a palavra “mente” mas optou pela palavra “alma” em momentos cruciais da sua obra. Por exemplo, Freud usou frequentemente a designação “estrutura da alma” que, em inglês, foi traduzida por “aparelho mental”, termo com óbvias conotações mecanicistas.
Bettelheim acreditava que estas sucessivas más traduções ocorreram para que a psicanálise parecesse mais “científica”, mais próxima da ciência natural do que da ciência humana, procurando encaixá-la num quadro de referência comportamentalista que enfatiza um olhar “de fora” e não um olhar introspectivo “para dentro”.
Poderíamos acrescentar que a eliminação da “alma” em favor da “mente” parece inserir-se nessa espécie de cruzada moderna contra a subjectividade que deseja apagar quaisquer noções de vida interior. Desde John Locke, parece preferir-se uma mente “tábula rasa”, mais manipulável, do que uma “alma” com mundo interno, anseios e ideias próprias, o que pode ser perigoso para o poder.
Bettelheim fez ainda a observação de que aqueles que aprendem psicanálise através da “Standard Edition” tendem a usar a psicanálise como um exercício intelectual, abstrato. A psicanálise torna-se um modo de olhar para os outros, à distância, compreendendo-os através de conceitos intelectuais e não a partir de uma posição de proximidade empática. Uma teoria para aplicar aos outros, mas não a si mesmo.
Assim, a psicanálise corre o risco de reduzir-se a um jargão que se pode atirar para cima dos outros como quem atira pedras; em vez de ser um convite para olhar para dentro e compreender mais de nós mesmos.
A “alma humana” é mais lata que a “mente”. É uma noção que nos lembra que somos capazes do pior e do melhor. Uma alma em conflito é capaz de criar à sua volta uma enorme espiral de destruição e caos. Mas a consciência da nossa mortalidade e potencial destrutivo também pode conduzir ao desejo de preservar o que consideramos um bem para aqueles que amamos e que virão depois de nós.
Nestes tempos que vivemos é urgente reanimar a alma… com Eros e não Tanatos… com beijos e não com pedras.
Bibliografia: Bruno Bettelheim (1984). “Freud and Man’s Soul”. Vintage Books. Random House.
Imagem: António Canova, "Psique reanimada por um beijo do Amor" (1787-1793), Museu do Louve
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