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O que vais lá dizer?

A crise que temos vivido fez nascer várias linhas de atendimento, de que é exemplo a linha criada pela SPP. As pessoas que a procuram são as mais variadas, à semelhança do que acontece com as pessoas que procuram ajuda em serviços públicos de saúde. O que pode uma linha destas oferecer? E o que procuram as pessoas que recorrem ao serviço público? Ou ao privado?

Da experiência de trabalho como psicólogo num hospital público guardo algumas respostas dadas espontaneamente pelas pessoas.

Por exemplo, uma senhora dizia-me que as amigas a questionavam: “O que vais lá dizer ao psicólogo? Não podes falar antes connosco?”. Ao que lhes respondeu: “Vou falar com alguém que não me julga.” Ouvindo isto reconheci a importância que um espaço seguro, insaturado, pode ter para alguém que, como esta senhora, é frequentemente alvo de uma profusão de conselhos e “bitaites”, que a fazem sentir-se desadequada, criticada e corrigida.

Outra pessoa disse-me, certa vez: “Dei-me conta que este é o único espaço onde posso falar verdade. Em todas as minhas outras relações tenho que calar o que sinto para evitar entrar em desacordo com os outros.” O que me ajudou a perceber a importância de poder dizer em voz alta o que habitualmente se cala, como isso pode ajudar a ver mais claro e dar origem ao ensaio de novas formas de agir.

Outra ainda, disse: “Quero contar-lhe que ando beber demais quando estou sozinha. Agora que lhe contei, estou certa que isso me vai dar mais força para deixar de beber, porque sei que vai ficar a pensar em mim e não vou querer preocupá-lo”. Este comentário ajudou-me a perceber a utilidade de condividir as dores e as preocupações. Tornam-se mais leves, assim como é mais fácil transportar um peso a dois.

Estas observações, por surgirem espontaneamente e não de forma provocada, trazem um selo de autenticidade e de verdade mais eloquentes do que as definições que se encontram nos livros técnicos. Vêm de pessoas simples, pouco escolarizadas, com condições de vida difíceis e precárias. No entanto, estas pessoas revelam uma perspicácia para observar o que se passa em si e nos outros, que ultrapassa muitos daqueles mais diferenciados.

Numa época em que as intervenções de saúde tendem a ser cada vez mais tecnicistas, acreditando maniacamente que todos os problemas têm uma solução tecnológica e mecanicista, o tratar (“cure”) encontra-se cada vez mais dissociado do cuidar (“care”), favorecendo relações distantes, pontuais e espaçadas, ao invés de próximas e regulares.

Por isso, oferecer uma escuta orientada não só para o explícito mas também o implícito, criando um espaço seguro onde as pessoas podem dizer em voz alta o que calam, condividir as suas dores e preocupações, procurando transformá-las e ver mais claro o que é confuso, abrindo lugar para novas formas de agir, sem serem julgadas nem bombardeadas com conselhos e diretrizes, pode ser algo precioso e raro.

O que é ilustrado magistralmente por Anton Tchekov no seu conto “Tristeza”.

Um cocheiro, que perdera o filho há uma semana, tenta em vão falar sobre a sua perda com várias pessoas. E é rejeitado por todos aqueles junto de quem procura uma disponibilidade de escuta, só encontrando pessoas impacientes e apressadas. No final, é junto da sua égua, que se encontra no estábulo a mastigar feno, que encontra acolhimento para falar da sua dor:

“— É assim, minha boa e velha amiga… Ele já não existe, Cosme, filho de Jonas. Não teve grande carreira. A doença minou-o, e ele morreu… Para nada. Vejamos: imaginemos que tu tens um potro, e que tu és a sua mãe, a mãe desse pequeno potro… E subitamente — uma hipótese — esse potro morre… isso não te daria pena, não?

A pequena égua mastiga, escuta e sopra nas mãos do seu dono.

Jonas deixa-se enternecer, e conta-lhe tudo.”

Imagem: Luís Galvez, “Tristeza”

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