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Mais voir un ami pleurer… !

Que tipo de sociedade é esta, em que se encontra a mais profunda solidão no seio de tantos milhões?

Karl Marx (1846)

A pandemia associada à COVID-19 tomou conta das nossas vidas e da nossa mente. Uma brutal irrupção bloqueou a fantasia e tornou-nos a todos prisioneiros do real, potenciais traumatizados de guerra, refugiados no conforto de uma casa própria. Na confluência do exterior e do interior, uma sensação de vulnerabilidade desconhecida, de incerteza e de falta de controle, fez colapsar áreas de confiança num ambiente habitualmente previsível.

Em insónia ou pesadelo, talvez regressemos noite dentro à angústia do desamparo inicial, frente a uma ameaça à vida, na ausência de um colo que nos sustenha e embale, nos sossegue e salve. Em permanente ligação às notícias do país e do mundo, fazemos correr as páginas e os canais à procura de notícias, possivelmente em busca de horizontes de esperança ou de uma tragédia que possamos comparar com a nossa. Ansiamos que os avanços da ciência nos tragam a estrutura do vírus, as suas variantes genéticas e as principais vias de contaminação, que parece que vão sendo conhecidas.

Somos habitados por incógnitas: Quem transmite o vírus? durante quanto tempo? a que ritmo estará a sofrer mutações? Quando achata a curva e o que poderemos fazer para a achatar? Quando vem o pico e depois a queda? E a vacina? daqui a dois meses? seis meses? um ano? quanto tempo e qual o isolamento necessário? e o que virá depois?

Para já, o principal desafio desta pandemia é o de uma cidadania responsável, dizem-nos. E concordamos. Confiamos. Ficamos em casa. Sim, prometo que ficarei protegida em casa e que protegerei os outros.

Mas ontem recebi o telefonema de um amigo em lágrimas, impedido de acompanhar a mãe (uma “mãe Covid” … como agora se designa) em situação crítica num hospital. Hoje chegam-me as imagens de idosos isolados em lares e em enfermarias improvisadas em quartéis (“idosos Covid” ou potenciais Covid… como agora se designam). Há instantes soube de um amigo recém-entubado que serei impedida de visitar. E é isto que hoje me vai impedir de sonhar em paz.

De entre as fontes de sofrimento que ameaçam o ser humano, em O mal-estar da Civilização(1929) Sigmund Freud destaca três: o poder devastador e implacável das forças da natureza, a ameaça de deterioração e decadência que vem do nosso próprio corpo, e o sofrimento que advém das relações entre os humanos. O sofrimento que tem origem nesta última fonte talvez seja, de entre todos, o mais penoso.

Mesmo que a proximidade maior se traga no coração e que quando estamos sós possamos sentir-nos acompanhados, a sensibilidade para o reconhecimento do acompanhamento de pessoas – a maioria serão idosos – em situações críticas, deveria fazer tomar medidas de emergência. Que um familiar ou amigo possa estar ao lado dos seus, com o devido equipamento de segurança, como qualquer profissional de saúde. Quanto aos funerais, rituais de afecto e presença, os lutos poderão acompanhar-se a seu tempo, com tempo. Mas o momento da morte… no momento da partida, alguém que esteja por perto para abraçar e embalar.

Sei que virão progressos extraordinários nas ciências e nas suas aplicações técnicas e que as ruas tornarão a encher-se de gente, mas enquanto aceitarmos que morra uma mãe, um idoso, um amigo, numa cama de hospital ou de um lar, sem que possa ter ao seu lado uma presença amiga, nada nos salvará da maior peste.

Como cantou Jacques Brel: (…) É claro que há as guerras da Irlanda/ (…) É claro que existem as nossas derrotas/ e depois a morte lá no fim.  (…) Mais voir un ami pleurer…!

Imagem: aguarela Maria Teresa Sá

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