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Maria Teresa Sá [Psicanalista]

Kairos, o tempo oportuno

O TEMPO, esse grande escultor

Marguerite Yourcenar

Kairos representa na mitologia grega o tempo existencial, subjetivo, qualitativo, essencialmente indeterminado, o tempo oportuno, por oposição a Chronos, o tempo cronológico, sequencial, o tempo que se pode medir.

Há lugares onde não é possível ir mais depressa do que o tempo que lhes convém. São os lugares do humano e dos processos de oscilação entre o que já não é e o que ainda não é.

Habitamos uma época inquieta, em que a abolição do tempo, decalcada do mundo do mercado, se vai alastrando. A ideologia do tempo real vai ganhando terreno nas nossas existências, na relação com o conhecimento e na própria produção cientifica. Os percursos de aprendizagem encurtam-se e as competências aplicadas ao mercado de trabalho inundam os curriculos. O pedido de respostas imediatas invade a sociedade, as instituições, as famílias, as pessoas, as consultas, cada um de nós. O vivido psíquico da maturação afectiva e social e a sua componente fantasmática essencial modificou-se. Os processos de longa duração vão sendo desvalorizados, quando não impedidos.

O tempo imediato, associado ao princípio do prazer, é por excelência o tempo da infância. A Psicanálise considera que os alicerces da estruturação psíquica se vão construindo na dependência dos laços afectivos que a criança estabelece com os adultos e que é por identificação com a estruturação intrapsíquica destes adultos e da sua relação com o real, que a criança adquire uma gradual capacidade para diferir, simbolizar, transformar. O diálogo entre o princípio do prazer e o princípio da realidade abre um espaço transicional que é também um espaço entre o puramente imaginário e o real vivido, o individual e o coletivo, onde se constrói o contrato social e de onde emerge a criação autêntica.

Matéria prima na construção do psiquismo, a temporalidade constitui-se igualmente como uma dimensão privilegiada do trabalho psicoterapêutico: o tempo necessário à expressão de uma queixa; o tempo necessário ao surgimento de um pedido; o tempo necessário à construção da confiança; o tempo para uma interrogação sobre si mesmo; o tempo para habitar a nossa história em vez de sermos apenas habitados por ela; o tempo para a deslocação de um lugar conhecido para um lugar ainda por conhecer.

Até surgir a dimensão psíquica profunda de uma queixa ou de um sintoma, até ocorrer uma deslocação do lugar do sofrimento para o lugar da elaboração, do lugar da repetição para o lugar da criação, há todo um tempo a percorrer, em conjunto. Será muitas vezes, como refere Fernando Pessoa, o tempo de abandonar roupas usadas que já têm a forma do nosso corpo e caminhos que nos levam sempre aos mesmos lugares. Tempo de travessia, expansão e abertura, novos começos, que nos conduzirão desejavelmente mais perto de nós. E nesse sentido também mais perto do Outro.

Vivos e presentes ao mundo e à contemporaneidade, comprometidos com o humano e com a clínica do sujeito, guardiões dos tempos de crescimento e de elaboração, não poderemos senão aliar-nos ao tempo oportuno à construção do humano e a Kairos.

Imagem: Kairos, Salviati, Francesco (1552-1554), Palazzo Saccchetti

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