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Fogachos Pandémicos: I – O tempo suspenso

A experiência da passagem do tempo não é igual para toda a gente, que é o mesmo que dizer que não é linear. No entanto, a impossibilidade de encerrarmos o confinamento tem produzido um efeito genericamente desorganizador. Levamos um ano disto e não há, de forma clara, um fim à vista. O futuro parou e agora é como se nem pudesse ser imaginado, como se tivesse ficado suspenso. Uma suspensão que parece relacionar-se também com a expectativa de que a cura ou a doença – e com ela a possível morte – chegue finalmente. Aguardar o embate certo é, frequentemente, pior do que o próprio embate.

Vivemos assim num interregno e, como esclareceu Bauman, «o termo interregno foi originalmente usado para denotar o desfasamento de tempo que separava a morte de um soberano real da entronização do seu sucessor. Estes costumavam ser as principais ocasiões em que as gerações passadas passavam pela experiência (esperada, de resto) de uma ruptura na continuidade monótona de governo, lei e ordem social» (2012). Embora possamos não esperar uma mudança estrutural de regime político, a situação sanitária impôs-se tão intensamente que comprometeu o normal funcionamento social, não sendo ainda evidente a total abrangência das rupturas consequentes. Esta incerteza contribui igualmente para um clima de suspensão temporal, em particular pelo impacto socioeconómico. Não podemos crer que a ausência de futuro e o empobrecimento não tenham consequência na vida mental. Assim, a ameaça que este não-futuro constitui assemelha-se a uma espécie de devir incerto, uma continuidade-na-instabilidade e na precariedade. Um limbo que se implica na nossa experiência externa e interna do dia-a-dia.

Poulichet sugere a existência interna de «um tempo que passa e um tempo que não passa», como se fossem conversas que se vão sucedendo e outras que, por falta de interlocutor ou de capacidade de comunicar, não acontecem ou ficam interrompidas. A Psicanálise sempre mostrou interesse pelas conversas que não temos, trazendo-as para o corpo da experiência analítica. Estas conversas omissas constituem facilmente “devires” anónimos, gestos sem elaboração e de natureza imprevisível como tantos dos nossos lapsos, comportamentos e sentimentos mais elusivos.

A experiência clínica neste período tem-nos mobilizado a atenção para estes devires. A pandemia não trouxe uma situação psicológica inteiramente nova per se, porque nunca conseguimos escapar não só à contingência como à vivência catastrófica. Todavia, por ser um fenómeno social total, a nossa experiência de continuidade psíquica foi comprometida, no sentido da esperança e da segurança de que todos nos precisamos munir. Agravou, isso sim, o que já residia no espaço imóvel do tempo, catalisando problemáticas pré-existentes e (re)introduzindo uma intensa vivência da angústia de morte. Vivemos um tempo que não avança e a estanquidade tem um cheiro fétido.

Neste sentido, a vida em casa tornou-se facilmente passada em espelho, a reflectir ou mesmo a repetir o que temos dentro. Do lado de fora, o anúncio repetido dos números diários de infectados e mortos. Números flutuantes, mas que nos alertam para algo sem término à vista. Com este confinamento, o que antes poderia estar presente numa certa obscuridade psíquica, parece agora ter encontrado uma passagem, trazendo-nos à consciência uma sorte complexa de actos, restrições, transgressões, sintomas, sonhos, ilusões e vislumbres. Nenhum destes conteúdos se encontrava particularmente inactivo já que as conversas que não temos parecem ter essa característica: não têm solução, não se escoam nem se sintetizam noutras e portanto não se tornam passado. Polichet (1994) refere que «um acontecimento existe verdadeiramente na nossa representação quando foi excluído de um presente e pode encontrar-se representado num outro presente, isto é, quando se pode contar como ausente». Se não enterramos ou nos despedimos dos mortos, não lhes permitimos inscrição num passado vivo e inibimos o futuro. As conversas omissas são aquelas que, mesmo que procuremos estratagemas escapistas, subsistem. Já as conhecíamos das noites de insónia: perduram noite dentro e previnem a chegada do sono. São pensamentos que insistem e não se alteram com a passagem do tempo, até à eclosão da angústia.

O cinema, como nos sonhos, usa sobretudo dois truques para abordar a experiência da suspensão do tempo: repetição de rotinas comportamentais e planos fechados. Neste confinamento, a repetição diária dos mesmos actos num cenário que é essencialmente sempre o mesmo cria esse efeito. Vivemos numa época em que o claustro não é mais apenas monástico e constituiu-se banalidade doméstica. Meltzer demonstrou de modo pungente como os locais que procuramos para nos proteger – físicos ou emocionais – podem tornar-se infernais de aprisionantes. Porque temos sobretudo vivido dentro de locais como em casa ou no trabalho (quando estes não são a mesma coisa), o campo mental onde a repetição ocorre esvazia a especificidade do próprio local, tornando-o rarescente e psiquicamente infértil. A situação ganha ainda maior urgência quando olhamos as crianças. Suspendemos-lhes dolorosamente a liberdade de movimentos necessária para um desenvolvimento harmonioso, adiado não se sabe para quando. Com os adultos não é melhor. Quando uma solidão se agrava, mesmo não estando sozinhos, vemos como a nossa história de vida não cessou o impacto no presente.

O tempo que passa e o tempo que não passa parecem encontrar-se nesta encruzilhada do confinamento, alterando a experiência da vida interna. Em Psicanálise diríamos que na situação transferencial a presença do analista possibilita o retorno daquilo que não cessa. Daí poder falar-se dos encontros entre o tempo móvel e o tempo imóvel no contexto analítico. Durante o trabalho em sessão, procuramos que o que não cessa comece a ser ligado no diálogo e no silêncio, com o propósito de que passe. É desse modo que a transferência actualiza a conversa não tida, aquilo que não cessava de vir sem ter para onde, e faz do analista uma espécie de “eixo de temporalização” como refere Poulichet. Contudo, a suspensão do tempo à qual assistimos nestes estranhos dias pode provocar uma colisão destes dois tempos sem que, no entanto, seja possível encontrar um eixo organizador. Uma colisão que confunde e entope um passado e um presente, e que inibe a construção do futuro.

Imagem: “Death on a Pale Horse”, JMW Turner

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