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Bois & palácios: o impacto da crítica no narcisismo ou… Ditadores há muit@s!!!

A relação do sujeito com a crítica pode constituir um bom indicador da qualidade do seu narcisismo. Refiro-me, eminentemente, à crítica externa, sensata e bem fundamentada, avessa a ataques de natureza invejosa e destrutiva.

Ser criticado por alguém pressupõe, da parte do sujeito, uma aceitação de um olhar estranho, que se debruça sobre as produções do dito sujeito (ou sobre esse mesmo sujeito). Aceitar uma crítica requer certa robustez narcísica e a capacidade de integrar uma visão outra sobre si próprio, portanto.

Sábado, 22 de Janeiro, pelas 2 horas da manhã, na Turquia, uma destacada jornalista televisiva, Sedef Kabas, foi detida pelas autoridades, acusada de insultar Erdogan. Consta que Kabas terá citado, em órgãos de comunicação social e redes sociais, um provérbio célebre: “Quando o boi chega ao palácio, ele não se torna rei; mas o palácio torna-se estábulo.”

Se Erdogan se sentiu insultado, lá terá as suas razões. Outros, no lugar do presidente turco, ater-se-iam mais no aspecto metafórico do provérbio, relegando para um plano secundário as interpretações literais da sentença.

Nos regimes autoritários, onde impera o culto do líder, vigora uma particular concepção de verdade (em sentido amplo), considerada única, não se admitindo outras alternativas à preconizada pelo poder. A verdade é o que a(s) autoridade(s) explicita(m), nada mais sendo tolerado. Por regra, as competentes máquinas repressoras destes regimes encarregam-se de eliminar os olhares alternativos, que ousam ângulos de visão outros, diferentes dos fixados pelo cânone.

Com variações de grau, naqueles regimes, a componente narcísica maligna constitui uma trave essencial da liderança – refiro-me, por exemplo, às autocracias, despotismos e totalitarismos. Os líderes destes regimes, com frequência, consideram-se senhores de uma natureza especial, singular, que os torna destacados, particularmente aptos a exercerem o poder, com ou sem legitimidade externa. Dir-se-ia que se posicionam acima da mundana condição humana, que define os demais, o povo. Não raro, ironicamente, estas figuras provêm de meios muito desfavorecidos, tendo sido forjadas e moldadas pela privação, precariedade, carência e humilhação… Ora, através de um exercício de super-compensação – materializado no acesso ao poder e seu exercício insensato -, no lugar da ferida e vergonha de outrora, estas peculiares criaturas colocam o orgulho desmesurado, a arrogância, e o autoritarismo.

Ao longo da história, sucedem-se os exemplos de personalidades que, uma vez instaladas no poder – ao qual acederam por vias tortuosas, nem sempre legítimas e, o mor das vezes, eticamente reprováveis -, nele se fixam, perpetuando-se: Ceausescu, Kim Il – sung, Kim Jong-Il, Kim Jong – un constituem alguns dos exemplos mais gritantes destes fenómenos. Interessante, também, é verificar como, após acederem aos cargos de poder, estes líderes exigem dos ‘súbditos’ uma constante veneração, admiração incondicional, um eterno enaltecimento. Não fora isto trágico, seria risível…

E a crítica?

Ora, criticar constitui um imperativo da condição pensante, pressupondo uma apreciação que não apresenta afinidade alguma com a especularidade que os narcisismos menos robustos exigem! O exercício crítico maduro demanda distância, ponderação, isenção (tanto quanto possível), e uma equilibrada capacidade de questionamento. Criticar não é, nem bajular, nem destruir. Trata-se de um trabalho exigente, que obriga o seu autor a manter-se firme sobre uma fina corda de aço.

Evidentemente, os narcisismos muito vulneráveis – nomeadamente os das figuras que acima enunciei – rejeitam a crítica autónoma…

A pretérita blogosfera, as redes sociais e a comunicação social constituem veículos de divulgação e promoção do pensamento, entre muitas outras coisas. Servem vários propósitos, entre os quais figura a autopromoção. Muitos de nós recorrem a estes veículos para difundir ideias, reflexões. Alguns valem-se destes dispositivos para colmatar vulnerabilidades narcísicas: promovem-se e gratificam-se com o retorno dos leitores e seguidores. Estas gratificações apresentam-se sob formas muito diversas: meras apreciações positivas, ‘likes’ em ‘posts’ ou imagens (‘selfies’), comentários abonatórios, chegando às bajulações, enfim…

Recentemente, nas redes sociais, dei-me conta de algumas figuras destacadas, com visibilidade indesmentível, paladinos dos valores democráticos (!!!), que mantêm com os leitores e seguidores uma relação assaz peculiar. As mesmas figuras públicas, do meio académico e jornalístico, recorrem a várias plataformas, onde, diariamente, expressam os seus pontos de vista sobre variadíssimas questões. O que pensam e dizem, para o caso, é absolutamente irrelevante. Interessante é a circunstância de lidarem com a crítica negativa de modo similar.

As referidas figuras públicas, diante de uma observação menos abonatória, expressa com correcção e respeito (não me refiro ao insulto ou impropério), imediatamente silenciam os interlocutores, ou apagando os comentários proferidos, ou – pura e simplesmente – bloqueando o seu autor! Claro está, são por elas acolhidas de braços abertos todos as manifestações elogiosas – algumas delas não passando de tontas adulações.

Estas soluções radicais, apesar de legítimas, não deixam de revelar uma indisfarçável imaturidade. Em rigor, a falta de cultura democrática, de que esta conduta despótica é prova, decorre de uma assinalável vulnerabilidade narcísica, que me permito formular de modo simples: “ou me elogias, ou não existes!”

Apagar comentários que nos põem em causa, silenciá-los e bloquear os seus autores é uma solução muito questionável, regredida, posta ao serviço da preservação da uma imagem de si frágil, ainda que aparentemente grandiosa – afim com brilho, ousadia e glória. Estes comportamentos, algo caricaturais, mantêm uma ilusão de omnipotência e esplendor, na medida em que erradicam do universo do sujeito tudo o que não siga uma lógica especular, que reflita apenas o que o mesmo sujeito, em superfície, crê ser: uma figura especial.

A meu ver, o desequilíbrio narcísico que venho ilustrando nesta curta reflexão poderia socorrer-se de uma outra metáfora onde também habitam bovinos e edifícios faustosos (“Um boi a olhar para um palácio”), subvertendo-a… é que raros são os bois e ainda mais raros os palácios;)

Que bom seria se fossemos todos singelos T8 da 5th Avenue…

E agora, venham de lá essas críticas [só as sensatas e abonatóriassssssssssssssss] É que um homem não é de ferro, muito menos o seu narcisismo ;)))“

Imagem: Kim Jong-un, Líder Supremo da Coreia do Norte

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