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Árvore[S] de Natal


1. Em 1981, no Colégio Moderno, iniciei o que, então, se designava por ‘ensino preparatório’. Finda a (à época chamada) ‘quarta-classe’, aguardava-me o vulgarmente conhecido ‘primeiro ano do ciclo’.


Calhou-me em rifa, ao longo de dois anos lectivos seguidos, um mui jovem professor de Estudos Sociais e História, homem culto, rígido e com indisfarçáveis convicções de esquerda, António Louçã de seu nome [irmão de Francisco Louçã]. Nunca mais nos cruzámos, mas a persistente referência daquele professor a “A Árvore dos Tamancos” (‘L'Albero degli Zoccoli’, 1978), célebre filme de Ermanno Olmi, nunca me abandonou. Só muito mais tarde - teria eu perto de 40 anos -, por mera casualidade, deparei com uma cópia da obra, em DVD, numa loja recôndita de Madrid. Evidentemente, não resisti ao apelo infantil daquele objecto!


A obra de Olmi, que arrebatou distinções sobre distinções, retrata o quotidiano de camponeses (‘servos da gleba’), no período medieval. Na trama, certo dia, um pai talha um par de tamancos destinados a proteger os pés do filho, a partir de uma árvore da propriedade feudal, isto, sem consultar previamente a autoridade senhorial. A ousadia do pobre homem é punida com a expulsão do feudo. O filme, que retrata a desumanidade, a desigualdade e a injustiça de forma primorosa, conta com a particularidade de recorrer, em exclusivo, a actores não profissionais, circunstância que o torna ainda mais pungente.


2. Estava eu a dar os primeiros passos na arte da psicanálise, quando um jovem adolescente que apresentava uma problemática assaz incapacitante me procurou. Tratava-se de um indivíduo dotado de invulgar inteligência, que vivia as minhas aproximações com assinalável angústia. O seguimento durou alguns meses, tendo sido interrompido por questões da realidade, eminentemente. Vivi o afastamento do meu jovem paciente com algum mal-estar, um sentimento de insucesso e injustificada culpabilidade - “Acho que não fiz tudo o que podia pelo rapaz…”, ruminava eu, ao longo dos tempos subsequentes…


Este ano, volvida mais de uma década sobre o primeiro encontro com aquele jovem paciente, recebo uma mensagem escrita, em que alguém faz uma descrição minuciosa dos motivos que o levam a recorrer aos meus préstimos. A mensagem termina com vários elemento e referências cujo propósito visa reavivar a minha memória sobre a identidade do escriba, que em tempos idos… fora meu jovem paciente. Percebi de quem se tratava de imediato, sem ter necessidade alguma daquela profusão de referências! “Podia lá eu esquecer-me de ti, rapaz!”, pensei com os meus botões.


Devo confessar que fiquei radiante com o reencontro terapêutico, destinado a dar polimento aos tamancos de um, agora, jovem adulto.


3. Na senda de Olmi (quiçá), inspirando pelo cânone neo-realista, o cineasta chinês Li Ruijung propõe-nos o pueril “Regresso ao Pó”, filme actualmente em exibição. A obra é de uma espantosa singeleza, narrando a união de um casal de desafortunados, Ma e Cao. As respectivas famílias encaram o casamento de ambos como uma forma sagaz de se desligarem das duas criaturas. Espantosamente, o vínculo que une ambos transforma aquela união (expectavelmente frustre) numa árvore frondosa e cheia de vida, de onde cedo nascem frutos sumarentos.


O casal vive numa aldeia chinesa inóspita, fria e distante, muito próxima da realidade feudal. As relações entre os membros da comunidade pautam-se pela funcionalidade e interesse, pairando sempre o espectro da exploração. Ma e Cao não têm rigorosamente nada, materialmente falando. O amor entre ambos vai brotando, timidamente. Juntos, com um esforço heróico, cultivam o solo árido, constroem uma casa, a partir da terra e argila. Vão-se rodeando de animais domésticos, que acarinham e estimam com assinalável desvelo - perto do epílogo, antes de abandonar a casa onde vivera transitoriamente, o homem depara com um ninho de andorinha tombado no chão, que continha avesinhas pequenas e ainda indefesas; para que não morram esmagadas pela escavadora voraz que se prepara para destruir a dita casa, coloca o ninho a salvo da inclemente máquina, estimulando as andorinhas a que partam sem mais delongas.


Ma e Cao são uma espécie de vitalidade indómita, enraizada em Eros, que impõe uma barreira a uma destrutividade desumana que se espraia. O casal representa o que de melhor encontramos em nós: a capacidade de amar, de construir, de respeitar e de resistir ao que atenta contra o bem comum. Sem que nos tenhamos apercebido, algures no passado de ambos, algumas almas bondosa haviam-lhes talhado tamancos resistentes, por certo!


4. Esta semana perdi uma querida amiga, que partiu abruptamente, cedo arrancada à vida. Maria Manuel Viana, escritora, professora e tradutora de excepção, deixou-me mais só, triste e descalço…

Dedico-lhe este texto.


Feliz Natal para todos!

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