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Os enigmas da criatividade

Quando penso em criatividade, associo a originalidade, inovação, autenticidade e construção. Não creio ser de grande utilidade procurar uma definição de criatividade. É uma faceta humana subjetiva, enigmática e misteriosa. “Criatividade não é um talento. É uma forma de agir.”, disse o ator John Cleese. Acrescentaríamos também uma forma de ser. Ser-se suficientemente capaz de arriscar e “experimentar o espectro completo das experiências emocionais, alegrias, tristezas e também naufrágios.” (Ogden, 2010). Uma liberdade interior para lidar com situações e emoções desconhecidas.

Para Freud (1924), citado por Cláudio Rossi, a criatividade depende de uma certa indolência da repressão e tolerância do superego, que permitem o acesso às fantasias inconscientes, matérias prima para a criação. O ato criativo era para Freud (1924) aquele que transforma o mundo. O melhor é ao mesmo tempo aceitar e rejeitar a realidade, acolher para transformar a realidade. Freud associa a criatividade com o trabalho do sonho, do luto e o trabalho clínico da elaboração. São trabalhos que aceitam e transformam a realidade e o mundo interno, gerando vitalidade. O trabalho de luto envolve um trabalho de criação.

Numa perspetiva diferente, para o psicanalista Winnicott, criativo é aquele que desfruta da experiência de estar vivo. Defendia que “a ação criativa é a que nasce da própria noção de existir. Portanto, aquele que pratica o fazer criativo existe: crio logo existo, logo sou, logo estou vivo e desfruto da existência como algo benigno. A criatividade é uma vitória contra a vida sem valor.”

A criatividade, segundo Sérgio Franco, relaciona-se “…com a noção da presença daquilo que mais nos carateriza como humanos: a impregnação da realidade com o nosso toque pessoal (…) É este algo próprio, secreto e pessoal de cada um que é a verdadeira fonte da criatividade.” Reconhecemos a realidade objetiva, mas somos capazes de a subjetivar, de criar uma narrativa que espelhe as nossas vivências, de atribuir sentidos às nossas experiências emocionais. De criar uma relação dialética entre a realidade e a fantasia, como nos diz o poeta José Gomes Ferreira,

Que bom haver realidade, A luz, o calor, o cheiro E estas pedras tão pequenas A desenharem-se em chão.

Que felicidade O mundo não ser apenas O nevoeiro Da minha imaginação!

Recordo a última sessão de uma psicoterapia, na qual o paciente se recordou espontaneamente de um poema de Almada Negreiros: “Mãe! Passa a tua mão pela minha cabeça! Quando passas a tua mão na minha cabeça é tudo tão verdade!” Senti-me muito tocado pelo paciente, que na despedida mostrou o afeto profundo e genuíno que sentia por mim. E senti-o criativo, ao evocar o menino que foi e a mãe (terapeuta) suficientemente boa que habita o seu mundo interno.

Será o mundo contemporâneo menos favorável à criatividade do ser humano? Presentemente é habitual sentirmo-nos absorvidos por um ritmo de vida frenético. E paradoxalmente experimentarmos dificuldades em desacelerar, em parar, em estarmos mais connosco próprios. A modernidade parece incutir-nos o lema de que “parar é morrer”, tornando-nos muito reativos e/ou submissos. Esta (pre)ocupação constante pode perturbar o nosso sentido criativo, impedindo o nascimento e o desenvolvimento de distintas partes do nosso ser.

Talvez por isso a Pandemia, apesar de toda a realidade “traumática” com que nos envolveu inicialmente (de medo, de números), ao obrigar a uma paragem do mundo externo, e constituindo uma situação de crise interna, pôde nalguns casos, tornar-se um veículo para a criatividade.

Conversámos com o músico Rodrigo Leão que, a propósito dos confinamentos, nos disse: “Quantas vezes terei desejado por momentos de tanto sossego e isolamento? Quantas vezes terei imaginado um mundo tão diferente? Com mais silêncio, com mais tempo para sonhar e para refletir… A verdade é que acabei por sentir durante o confinamento uma sensação de liberdade criativa pela qual há muito ansiava. E afinal, o que eu julgava ser muito importante, acabou por se tornar inicialmente quase um obstáculo. Os momentos de inspiração que sempre procurei, nesta fase inicial, pareciam forçados e pouco naturais. Talvez por isso tenha acabado por passar menos tempo a tocar. Então aproveitei e li mais para tentar justificar esses momentos. Sou preguiçoso por natureza, mas quando surge uma situação inesperada, faço por me abstrair da realidade e tento criar qualquer coisa. Foi assim que, apesar de tudo, foram surgindo pequenas ideias de músicas através de desenhos, fotografias e pequenos videos que acabaram por dar origem a um CD. Tive a sorte de fazer o confinamento fora de Lisboa, no Alentejo, uma espécie de bolha onde me senti mais humano e de alguma forma mais feliz. Tudo o que fiz durante esse tempo acabou por ficar ligado àquele sítio e às pessoas que ali estavam.”

E o sofrimento psicológico desencadeará um potencial criativo? Apesar de não podermos generalizar, a experiência da dor mental pode conduzir uma pessoa a ter um contato mais próximo com lados seus mais primitivos e estimular a criatividade. A melancolia, por exemplo, pode ser um fator determinante para o ato criativo. A tristeza e a falta de sentido da vida podem conduzir a uma elaboração psicológica de lutos e proporcionar novas vias de expressão e superação. O melancólico sofre, mas no seu sofrimento encontra caminhos na direção de respostas e de forças reparadoras capazes de encontrar a própria potência de existir e viver. As angústias de morte podem fomentar processos criativos, como sucedeu com Rui, um paciente que após uma operação delicada e consequente sofrimento físico e psíquico, escreveu este poema:

Angústia * Corre, corre…estás a ver, tens força e consegues fugir Pois, mas então porque é que a paisagem é sempre a mesma? E estas pedras que se repetem interminavelmente? Estarei com uma espécie de cegueira, fixando-me em apenas uma imagem? O importante é andar, correr, assim poderás ver o que acontece… Mesmo que te faltem as forças, certifica-te que não ficas com os bolsos vazios… Às vezes fico a alucinar que estou deitado e imóvel Prestes a ser sugado por uma boca…ou pelo vento… Deve ter acontecido alguma coisa para não ouvir ruídos… Ou será que fiquei surdo e não consigo emitir sons? Que país é este onde parece que só existo eu? Mas isso não é importante O importante é que a luz inunda o ar e as pedras que imagino existem… Estar por minha conta não é assim tão mau, há tanto para imaginar… O pior é quando me distraio e o vento leva os meus pensamentos E tento agarrar-me ao meu corpo e já não sei se estou a sentir ou a pensar A rir ou a chorar…a viver ou a morrer…

Não sabemos porque é que alguns são mais criativos do que outros. Mas para se ser criativo é necessário ter-se introjetado boas experiências, que permitam o desejo de restaurar e recriar o que foi perdido e destruído através de novos investimentos. A criatividade e a vitalidade provêm frequentemente do aceitar e viver a dor psíquica inevitável à existência humana.

*A publicação deste poema foi previamente aceite pelo paciente

Referências Bibliográficas

Cintra E. M. de U., Vieira M. R. J., “O trabalho criativo: perda, luto e memória”. Revista Interinstitucional de Psicologia, 9 (1), jan -jun, 2016, 50 – 66

Franco, S. (2003). Psicopatologia e o viver criativo. Revista Latinoamericana Psicopatologia Fundamental, VI(2), 36–50.

Ogden, T. H. (2010). Esta Arte da Psicanálise. Artmed Editora. Samuel, Y. (2020).

Rossi, Cláudio. Arte e psicanálise na construção do humano. Cienc. Cult., São Paulo, v. 61, n. 2, p. 25-27, 2009.

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