É difícil dizer se o que exerceu mais influência sobre nós e teve importância maior foi a nossa preocupação pelas ciências que nos eram ensinadas ou a personalidade dos nossos mestres.
Sigmund Freud
Na passagem do mundo endogâmico familiar para o mundo social exogâmico, a escola e os professores têm uma importância decisiva. Vão proporcionar à criança e ao jovem inúmeras aprendizagens e experiências de construção identitária, povoando o seu mundo interno com personagens e vivências que comporão a sua história de vida. Ao mesmo tempo que transferem para a escola a sua família interna, as respostas que a criança e o jovem encontrarão nestes novos lugares, permitem-lhes reajustamentos e reorganizações psíquicas e, por vezes, que se vejam a si próprios com olhares que espelham pela primeira vez o seu valor e que lhes abrirão novos horizontes. Estas experiências, quando de qualidade, são poderosos nutrientes de humanização e de equilíbrio narcísico. A pessoa do professor, pela carga simbólica que lhe está associada é, sem dúvida, um elemento determinante neste processo. Boris Cyrulnik referiu-os mesmo como importantes tutores de resiliência.
É consensual, nos estudos em Psicanálise e Educação, considerar a importância dos afectos transferidos para os professores, figuras que se tornam substitutos dos primeiros objectos de desejo. Escreve Freud em Algumas reflexões sobre a Psicologia do escolar (1914) «transferimos para eles o respeito e as expectativas ligadas ao pai omnisciente da nossa infância e depois começamos a tratá-los como tratávamos os nossos pais em casa (…) confrontamo-los com a ambivalência que tínhamos adquirido nas nossas próprias famílias e, ajudados por ela, lutamos como tínhamos o hábito de lutar com nossos pais em carne e osso ». A transferência instala-se no processo de ensino-aprendizagem quando o desejo de saber do aluno se liga a um elemento particular que é a pessoa do professor e, tal como no tratamento analítico, na relação educativa é a transferência que garante o sucesso do processo pedagógico. Iniciada a transferência, a figura do professor é alimentada e preenchida pela fantasia do aluno. Na transferência, o professor é investido de uma importância especial que lhe conferirá um poder que passa a fazer parte do inconsciente do aluno. É a partir desse lugar onde é colocado que o professor será escutado, é a partir desse lugar que será ouvido. É isso que explica, em parte, o facto de alguns professores marcarem tão decisivamente a trajetória escolar de alguns dos seus alunos e as suas histórias de vida. Esta posição, este lugar poderoso, que Freud, em Introdução ao Narcisismo,associaria ao Ideal do Eu, exige da parte do professor um importante trabalho de renúncia a uma posição narcísica de omnipotência, evitando cair na armadilha de aprisionar o aluno no seu próprio desejo, a fim de que este possa, libertando-se do seu passado infantil, constituir-se como sujeito autónomo e autor da sua própria história.
A relação professor-aluno é uma delicada teia de sentidos, representações, expectativas e desejos inconscientes, de onde emanam afectos e identificações cruzadas que despertam movimentos que resistem ao tempo e que marcam a vida e as suas escolhas. A Psicanálise ajuda o professor a compreender essa complexa malha relacional, a dimensionar a sua importância, a chamar a reflexão sobre si mesmo e sobre a sua prática, a sua responsabilidade ética e o seu imenso desafio.
A história do cinema possui alguns filmes inspiradores, em que um professor faz a diferença, pela nova relação que estabelece com os seus alunos, remando contra marés de indiferença, desalento ou imobilismo, pela perseverança, confiança e aliança educativa que instaura, sustentado num ideal de educabilidade, empatia, criatividade e abertura. O documentário “O Professor Bachmann e a sua Turma”, de Maria Speth, é um desses filmes.
Numa sala de cinema de Lisboa, numa Europa em sobressalto, o professor Bachmann traz-nos o segredo da hospitalidade e da solidariedade. Viajo para a cidade alemã de Stadtallendorf, também eu estrangeira, e durante quatro horas sento-me nos bancos da escola, com uma turma de adolescentes, chegados da Turquia, Bulgária, Rússia, Marrocos e de outros países. São ateus, muçulmanos, católicos e ortodoxos, têm 12, 13, 14 anos. Aqui, estamos todos em casa e ninguém é deixado para trás, seja qual for a fila onde se sente. Todos os lugares são de fala, construimos uma linguagem comum humanamente habitada, em que podemos ouvir-nos e acolher o que cada um traz como contributo, como questionamento, como acidente, como memória, como silêncio, como contradição. Estamos num espaço seguro, de respeito e de pertença, primeira condição para se tomar lugar e aprender. Como uma boa família que cuida do que é útil e bom para o desenvolvimento e crescimento de cada um e de todos. Ao som da música, linguagem universal, que vai pontuando como um estimulante e rico tecido de sons, uma construção colectiva, sou espectadora priviligiada do coração de uma relação única entre um professor e os seus alunos, de delicados momentos de empatia sensível e autenticidade, do apoio confiante ao momento em que surgem as dificuldades e do trabalho de cooperação grupal sustentado por um sólido e fiável quadro-continente em que ninguém é deixado só. O respeito pela diferença, o genuino interesse e curiosidade pela singularidade e ritmo de cada aluno, o convite ao aprofundamento da reflexão sobre o pensamento e os sentimentos, é o mesmo interesse com que o professor Bachmann atende e escuta as famílias, os dilemas e dificuldades da imigração. Em cada momento do dia a nossa sala abre-se ao mundo, ao sal e ao doce da vida, e então todo o medo de aprender se torna ligeiro, tudo está ligado, a aprendizagem faz sentido e apetece. O ano escolar chega ao fim, a turma parte e cada um fará agora o seu percurso. Certamente com novos e bons acompanhantes internos. Diz-se muitas vezes que o encontro com um professor pode mudar tudo, revolucionar a visão do mundo, abrir possíveis. Será O segredo de um professor.
O professor Bachmann demora-se ainda, olhando as mesas e as cadeiras vazias. Sento-me um pouco ao seu lado, em silêncio. Somos agora dois professores, à beira da reforma. Antes de sair da sala de cinema agradeço-lhe ter-me acolhido por algumas horas na sua turma, onde pude, de novo, renovar a confiança de que é possível acreditar.
Imagem: do documentário “O Professor Bachmann e a sua Turma”, de Maria Speth.
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