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Diário de bordo: A bordo do XXVI Congresso da Sociedade Brasileira de Psicanálise

Muito recentemente tive o privilégio de participar no último Congresso da FEBRAPSI (Federação Brasileira de Psicanálise) realizado em Fortaleza de 1 a 4 de novembro sob o complexo tema da Morte e Vida – novas configurações. Aventura motivada pelo desejo que reconheço intrínseco ao ofício do analista de encetar viagens a bordo da vida. Alma de viajante suponho – por territórios emocionais e paisagens de sensações e sentimentos, por lugares, pessoas antevendo, como Saramago (1997) tão bem enunciou precisarmos de sair de nós, alcançar o longe, o desconhecido, para chegar mais perto. 

Nesta viagem transatlântica por mares e territórios desconhecidos (nunca tinha estado no Brasil) levei na bagagem um trabalho clínico aceite para apresentação no Congresso na mesa redonda “Luto e Traumatismo” e um desejo largo de descoberta, vivências e conhecimento. O tema prenunciava amplas discussões desde as clássicas teorias das pulsões, às atuais configurações das forças propulsoras da vida e da morte na vida contemporânea, à violência e miséria humana e sua expressão material e emocional. E superou as expetativas: durante os quatro dias desenvolveram-se mesas redondas, grupos de trabalho, exercícios clínicos, painéis, cursos e temas livres proporcionando diálogos e reflexões à luz do contributo de diferentes pensadores da Psicanálise (Freud, Melanie Klein, Winnicott, Bion, Lacan, Antonino Ferro e tantos outros) e integrando a teoria, clínica e cultura através do vértice clínico.

E a pertinência do tema na complexidade psicossocial que assistimos no mundo contemporâneo ressoa de forma muito particular nos territórios brasileiros e foi, nesse sentido, a nossa experiência. A vida e a morte borbulha a cada instante; a exaltação da vida, na energia contagiante do povo tão presente no forró, no samba, na musicalidade e vibração do corpo sexual, na extraordinária capacidade de trabalho e timbre caloroso das pessoas mas a morte sempre à espreita ao virar da esquina, na violência dos assaltos na rua, na abismal estratificação das classes, na mendicidade infantil, na corrupção política que fede o ar que se respira. Marcou-nos a força propulsora da vida, o prazer de estar em relação com os outros e de pensar em conjunto desde logo facilitado pela integração prévia num grupo de trabalho da IPA (Three Level Model) que precedeu a abertura do Congresso. Trata-se de um grupo de Observação Clínica da IPA que usa material clínico de tempo não inferior a três anos de trabalho psicanalítico e que se propõe discutir as transformações ocorridas no funcionamento mental do paciente no decurso da análise. Foi um momento privilegiado de formação pela riqueza do treino de observação do material analítico em que somos estimulados a centrar o nosso olhar no que se evidencia no material da sessão respeitante a mudanças ocorridas na sessão ou entre sessões procurando despir-nos das nossas teorias explícitas e implícitas e estar atentos ao que o material ressoa em nós. Estarmos em contato com o desconhecido do Outro, da dinâmica analítica, de nós. Muito rico e só possível pela cumplicidade afetiva que se estabeleceu no grupo facilitadora do desenvolvimento do pensar.

A força propulsora do afetos aconchegantes tecidos, das paisagens de verde e mar e do pensar partilhado faz-nos sonhar voltar.

Imagem: Sandra Pires

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