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A Linguagem do coração



À Éme, doce companheira de muitos dias.


Revi recentemente, nas comemorações do oitavo aniversário do Cinema Ideal, o filme Heart of a dog . Heart of a dog é um longo poema experimental, em forma de rêverie, uma espantosa colectânea de imagens, sons, música e palavras, folhas de um diário íntimo que a realizadora folheia connosco, sobre a complexidade humana, a vulnerabilidade, o tempo de vida e a morte, a permanência e o esquecimento, sobre os seres ausentes que povoam o nosso pensamento e as nossa vidas. Lolabelle, a cadela que partilhou a existência de Laurie Anderson e do seu marido Lou Reed, é a personagem central do filme, nele celebrada de várias formas, fazendo-nos confidentes do seu mundo sensível e da profundidade e riqueza do laço que sobreviveu à sua morte. Desde a sequência de animação inicial, somos projectados num universo onírico - o sonho de um parto - em que Laurie é a parturiente e Lolabelle o recém-nascido, uma recém-nascida estranhamente grande pois que a sonhadora a colocou já adulta no seu ventre, antes de ele ser cosido, para que fosse possível trazê-la ao mundo e amá-la, para sempre.


A Psicanálise guarda muitas histórias em que cães têm um lugar de destaque, enriquecendo e inspirando a vida e o pensamento dos seus companheiros humanos. Assim foi com as cadelas de Freud, Lün-Yu, Jofi et Lün, assim com Justine, a de Lacan. Também li recentemente um magnífico texto de Stefano Bolognini - Ce qui peut naître entre un Psychanalyste et son chien - em que o autor reflecte sobre a riqueza da sua relação única com Lajos.

Para além do conforto que retirava da companhia de Jofi, Freud considerava a presença da sua cadela, aos pés do divã durante as sessões, como um bom «guardião do quadro». Dado que Jofi não expressava qualquer reacção às manifestações do paciente, concluía Freud que lhes transmitia um sentimento de aceitação e de segurança e que favorecia o processo de associação livre.


Que laço tão particular é este que liga um dono e o seu cão? Que partes de nós faz ele nascer, trazer ao mundo ?

Freud escreveria numa carta a Marie Bonaparte : “Tais são realmente as razões pelas quais se pode amar um animal como Jofi com uma profundidade tão singular, essa inclinação sem ambivalência, essa simplificação da vida, livre do conflito com a civilização, um conflito tão difícil de suportar, essa beleza de uma existência perfeita em si mesma. E, no entanto, apesar de todas as diferenças no desenvolvimento orgânico, esse sentimento de parentesco íntimo, de intimidade inquestionável. Muitas vezes, enquanto acariciava Jofi, via-me cantarolando uma melodia que conheço bem, embora não seja músico, a ária de Don Giovanni, um laço de amizade unia-nos a ambos” .


Esta ausência de mal-entendidos, de decepções, de traições, de conflitualidade e de duplicidade, permitirá que se viva uma relação prazerosa de tranquilidade, cumplicidade, intimidade e confiança. Os cães, para os que tiveram o privilégio de uma relação de conhecimento recíproco, são seres únicos em abnegação e persistência, numa ligação viva e concentrada às pequenas coisas e às alegrias simples da vida e da natureza, de um amor incondicional e de uma paciência silenciosa. É como se estivessem sempre do lado da criança que habita em nós, a que busca amor e aceitação, um olhar acolhedor que nos reconheça, que nos espere e que se alegre com a nossa chegada.


Algumas características reforçam possivelmente mais ainda esta sensação: a sua constância, a fidelidade, a ausência de qualquer julgamento, sejam quais forem as circunstâncias. Dir-se-ia que a ausência de linguagem favorece esta boa ilusão, mas para quem conheça bem o seu cão, ele fala-nos, dizem. Atentos aos seus sinais corporais, às expressões faciais, à diversidade dos latidos, a comunicação torna-se absolutamente compreensível e clara, assim como o cão, muito rapidamente se familiariza e interpreta cada uma das nossas entoações de voz, das nossas expressões faciais, gestos, hábitos, ruídos, hesitações, medos, odores, dores e alegrias, em particular as do seu companheiro humano significativo. “Se Jofie manifesta desagrado por alguém que nos visita, pode estar certo que há alguma coisa errada com essa pessoa”, terá dito Freud certa vez.


Escreve Lacan: "Ela é a única pessoa que conheço em relação à qual sei do que está a falar - eu não digo do que ela está a dizer - porque não é que ela não diga nada, simplesmente não o diz por palavras. Ela diz alguma coisa quando fica ansiosa - acontece - quando deita a cabeça nos meus joelhos. Ela sabe que eu vou morrer, o que algumas pessoas também sabem. O nome dela é Justine.”


Pascal Quignard em Les Désarçonnés, relata : “Freud sabia que tinha de tomar a decisão de se matar quando o seu cão se recusou a aproximar-se dele porque cheirava a morte (…) o cão começou a fugir do cheiro que vinha da boca do homem que amava ”.


Um cão carrega os desejos e as expectativas, mais ou menos saudáveis, mais ou menos patológicas, dos humanos com quem vive. Delas beneficia ou delas sofre. Como todo o ser em estado de dependência, reflecte o estado psíquico do seu parceiro humano e, assim, a relação pode ser boa ou má, poderá tornar-se o objecto onde se projectam demandas de antigas insuficiências narcísicas, partes sádicas, pode mesmo transformar-se num dramático caixote onde se deposita o lixo da existência e o abandono. E pode, assegurada a boa distância e o respeito pela sua natureza, ser o extraordinário companheiro de uma relação ímpar e inesquecível, que traz um equilíbrio e um bem-estar recíprocos.


Também o cão compreende um grande número de palavras e gestos que lhe são endereçados e responde-lhes à sua maneira, pode obedecer, pode opor-se, pode rebelar-se, fazer ouvidos de mercador, ou seduzir. O vínculo de um dono com o seu cão é profundo, íntimo e carnal, de pele a pelo, numa enigmática e delicada proximidade olfativa e táctil, sensível e silenciosa, como uma espécie de extensão do corpo, o que permite ao adulto momentos de doce tranquilidade, de evasão lúdica, de regressão benigna e salutar. Um cão pode tornar-se também um dique-suporte contra os sentimentos angustiantes da solidão do ser e contra medos primitivo de desamparo, uma companhia fiel e audaz para passeios de exploração pelos caminhos mais recônditos da floresta. Na infância, um cão pode ser o companheiro de jogos e brincadeiras, fusão de amigo real e imaginário de contornos transicionais, que possibilita múltiplas aprendizagens de humanização, empatia e sensibilidade.


Sem dúvida que poderemos também encontrar reminiscências da relação precoce mãe-filho na relação de uma pessoa com o seu cão, na medida em que esta relação é feita de uma estreita dependência, de pedidos, de necessidades e de busca de amor, de uma linguagem de sinais que pedem descodificação, cuidados e resposta, alfabetizações, enfim, uma função de rêverie. E acontece igualmente, num vaivém de identificações, que o lugar protector possa ser assegurado pelo cão ao seu companheiro humano.


Confidenciava-me uma amiga, a sua cadela aos nossos pés, “há duas ideias centrais para mim sobre a relação com um cão, a simplicidade e riqueza da relação e a ligação ao real que essa relação alimenta. No 'olhar simples', encontramos formas simples de sentir bem-estar. 'A ligação', nos momentos de possível ruptura, agarra-nos e traz-nos de volta. Resumia assim o que considerava ser a 'relação mais simples de amor'.


Testemunho na primeira pessoa: fui literalmente tornada mãe adotiva, sem possibilidade de fuga, pela fixação do olhar de uma cadela recém-nascida que um dos meus filhos trouxe do canil, sosseguei muitos dos medos de partes desconhecidas de mim, que ainda restavam por escutar após anos de análise, pela convivência diária com a minha cadela. Testemunho também que é possível perder-se no olhar de um cão, olhar cuja intensidade pode suscitar importantes questionamentos existenciais e profundas mudanças duradouras.


Como o filme de Laurie Anderson documenta, sabemos igualmente da imensa tristeza e dor psíquica que a morte de um cão amado pode trazer. E, também, que a riqueza do laço que com ele construimos, como ocorre com os humanos, é o que sobrevive e vence a morte.


Mais do que um animal, Lolabelle era a « empatia encarnada », confiava Laurie Anderson numa entrevista ao The Guardian. Que aprendizagens essenciais sobre a vida e a morte, do mundo e de nós mesmos, nos traz o coração de um cão ! Os nós que são desatados em nós por esta linguagem do coração, sem palavras !


Imagem:

Nipper, His Master's Voice, Francis Barraud, 1898


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