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Um Bem de primeira necessidade

That is part of the beauty of all literature. You discover that your longings are universal longings, that you’re not lonely and isolated from anyone. You belong.

F. Scott Fitzgerald

Preâmbulo

De entre as medidas restritivas impostas durante o estado de emergência incluiu-se a suspensão do comércio a retalho, com excepção das lojas de bens de primeira necessidade. A ministra considerou os livros como um bem de primeira necessidade e as livrarias puderam permanecer abertas desde que vedado o acesso dos clientes ao seu interior, com venda dos produtos à porta, ao postigo, ou entrega em casa. Considerou também a ministra que não existe o costume de vender livros à porta das livrarias e ainda menos por um postigo. A 4 de Maio, após 45 dias de estado de emergência, as livrarias reabrem.

Durante anos, Mary Jones, professora britânica instalada em Amiens, trouxe alimentos e alguns livros aos refugiados do acampamento improvisado de Calais. No verão de 2015 criou uma pequena Biblioteca a que deu o nome de “Os livros da selva” (o local recebeu a alcunha de “selva” pelas condições precárias em que os refugiados ali viviam). Conta esta professora que muitas destas pessoas desejavam prosseguir os seus estudos e que também procuravam livros que as ajudassem a ler e a escrever em inglês, a procurar um emprego, a preencher formulários. Mas o que entretanto a surpreendeu foi verificar o que as pessoas requisitavam na biblioteca: novelas, romances, poesia.

Porque é que estas pessoas, tão dramaticamente pressionadas por necessidades materiais urgentes, desejam ler novelas, romances, poesia?

Talvez porque, antes mesmo de serem um universo dotado de significações, a leitura e o livro ofereçam um espaço para habitar uma outra dimensão onde se pode retomar a respiração, permitam um passo ao lado, saltar para fora do caos,religar-se a si e ao mundo, regressar à realidade de outra forma, menos estrangeiro, menos desamparado, mais acompanhado, mais animado (com alma).

Um livro traz sempre uma oportunidade para construir um abrigo na selva, um canto nosso, onde podemos, desde as idades mais jovens, interpor entre o mundo real e o Eu uma rede de palavras, de conhecimentos, de imagens, de fantasias, uma rede que nos sustém e impulsiona, que torna o mundo mais habitável, enriquecido pela imaginação e pela visão interior do possível, do sonho.

A guarida que um livro oferece para pernoitar em segurança e receber alimento e tecto, histórias humanas que trazem significados e figurações ou que dão sentido ao indizível, lembra o holding, a função de rêverie e também o que escrevia Donald Winnicott a respeito da função vicariante de uma área transicional de experiência: construir uma ponte entre as exigências de adaptação e o Eu, um espaço de criatividade, para não sermos subjugados pelo real e podermos transformá-lo, para sairmos da pura imediatez das coisas e do instante ou, como diria Lídia Jorge, para “sair do nível da sobrevivência e encontrar um sentido ao que de outra forma seria um acumular de factos e gestos”.

Foi também Donald Winnicott quem falou da importância de um espaço de Intimidade, estofo da saúde mental, atelier interior onde se organiza a vida. A leitura favorece esse espaço. Tal como a arte, traz-nos múltiplos quadros das nossas paisagens interiores, por vias transpostas, metafóricas, dando forma ao que não é figurável, ao indizível, ao desconhecido. Na leitura são relançadas associações, pensamentos, curiosidade, aberturas. Os livros enriquecem as nossas conversas sobre a vida e com a vida, permitem transformar os acontecimentos, mesmo os mais trágicos, em algo que tem um sentido, que está para além do facto. A leitura não é uma técnica, é uma poiésis, não representa simplesmente as coisas em redor como já seriam antes, refá-las e fá-las ser ainda de outro modo. Um livro pode ainda dar resposta e forma a desejos ou medos que pensávamos sermos os únicos a viver. Não estamos sós, pertencemos a um mundo maior do que nós.

A leitura aproxima-nos do sonho. Humanos, não somos variáveis económicas mais ou menos ajustáveis, previsíveis e controláveis, somos feitos da matéria de que são feitos os sonhos, como diz Próspero na Tempestade de Shakespeare.

O Livro é um poderoso tutor de resiliência, essa humana capacidade de superar adversidades e reconstituir-se criativamente para uma nova vida (Boris Cyrulnik). Sabemos do papel da leitura em situações de crise, de luto, de doença, de pobreza, de violência, como ajuda a construir pontes para o modificável.

A leitura, o romance, a ficção e a poesia, anunciam que o tempo não é apenas o tempo do presente, que há outros lugares onde se pode habitar e recuperar, permitem viajar além dos percursos traçados pelo destino, deixar o face a face com o demasiado real, abrem ao espanto e ao imaginário, trazem encontros imprevistos, esclarecem aspectos de nós próprios e, à maneira de um “insight” psicanalítico, iluminam partes de nós até aí obscuras. E porque um livro não é algo de consumo rápido, introduz igualmente o virar de página, o vagar, o silêncio e o tempo. Ler é pôr-se a caminho.

Em  tempo de futuros ensombrados por incertezas e medos, a leitura traz benefícios não mensuráveis, invisíveis, a longo prazo, para que, crianças, jovens ou adultos, possamos resistir, continuar a encontrar lugares de liberdade e buscar um pouco de verdade na fúria propagandística dos dias. A leitura é um bem de primeira necessidade.

Imagem: Francis Smith

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