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Cândido ou o triunfo possível do otimismo



Na minha infância lembro-me de assistir na televisão a um programa de debate cultural onde o Miguel Esteves Cardoso afirmava num tom irrefutável que os escritores, independentemente da sua qualidade literária, eram incapazes de salvar vidas como os médicos. Na altura, concordei sem hesitações, parecendo-me uma opinião indubitável. Há uns meses, na RTP Memória, a fazer zapping sem grande destino por preferências televisivas, voltei a encontrar o mesmo Miguel Esteves Cardoso, muito novinho com a sua vivacidade contagiante, a defender no mesmo programa a sua verdade inquestionável. Ali, na caixinha do pequeno ecrã, o Miguel continuava igual a ele próprio (prerrogativas dos aquivos digitais); eu é que tinha mudado. Este reencontro fortuito com o passado transportou-me para um livro que me tem acompanhado desde os 17 anos e que, passadas estas décadas, estou convencida que me permitiu viver e, por vezes, sobreviver. Candide ou l’Optimisme do escritor e filósofo iluminista francês Voltaire, longe de ter sido o livro de que mais gostei, foi aquele que me foi fazendo companhia ao longo dos anos.


Esta obra universal conta a história de um bom rapaz, ingénuo e otimista por educação doutrinária que, aos 17 anos, é expulso do castelo onde vivia, perfeito e maravilhoso do Barão de Thunder-ten-tronckh e onde Cândido se cruzava com a linda e desejável filha do proprietário por quem se tinha tomado de amores. No fim do curtíssimo primeiro capítulo, Cândido é corrido ao pontapé pelo barão por ter sido apanhado a beijar a magnífica e formosa Cunegonda. Este conto que, logo que foi publicado em 1759 teve um grande sucesso, narra as desaventuras desta cândida personagem que vindo dum mundo fechado, protegido e perfeito é deixado à sua sorte num mundo exterior enorme, desconhecido e perigoso. O contraste entre a educação de Cândido, moldada pelo seu perceptor fervoroso seguidor do pensamento otimista de Leibniz e o mundo real cruel com guerras, escravatura, terramotos (com especial referência ao de Lisboa de 1755), naufrágios, perseguições e torturas às quais a personagem terá de sobreviver (reforçado pela desilusão de reencontro com a sua amada já envelhecida e feia) serve como forma de resposta crítica em tom irónico e mordaz à corrente filosófica, em voga na altura, que defendia a infalibilidade duma providência divina que dita que todo o mal particular é justificado por um desígnio superior que visa um equilibrado bem global.


Numa viagem à volta do mundo, seguem-se frenéticas e sucessivas peripécias que vão infligindo a Cândido, em tom de paródia, um sofrimento exagerado e estereotipado ao ritmo dum leitmotiv absurdo e ridículo de que “tudo acontece pelo melhor, no melhor dos mundos possíveis” (*). O desfecho desta longa jornada ganha forma de conclusão quando o nosso herói, que sobreviveu a todo o tipo de infortúnio, chega à resolução que na vida o que é preciso é cultivar o nosso próprio jardim.


À felicidade idealizada apresentada como lenda, Voltaire, contrapõe a solução duma vivência simples ligada à terra. Muito diferente da imagem do jardim do Éden, este espaço releva sobretudo dum jardim habitado no “pós-pecado-original” pela descoberta da rotina libertadora e gratificante do trabalho, que pelo seu esforço faz crescer o seu fruto projetado no futuro.


Neste espaço que cheira a relva e a terra húmida, as trovoadas, o vento, a seca e a saraivada já não são fatalmente ameaçadores, mas sim passíveis de serem enfrentados e ultrapassados com confiança e esperança. Um lugar onde o sol, a chuva, o orvalho da manhã e a brisa do final de tarde podem ser apreciados e acarinhados e onde a nossa personagem, agora adulta, pode relembrar e reviver as delícias do castelo do Barão de Thunder-ten-tronckh da sua juventude com saudade, mas sem um sentimento de perda irreversível. Um espaço onde se possa fazer o trabalho de luto das imago-parentais idealizadas.


Foi sob o mote da viagem iniciática de Cândido que, também eu rechaçada aos 18 anos do meu palácio cor-de-rosa com uma pancadinha nas costas - não por ter prevaricado, mas por ter cumprido tão bem com as minhas obrigações - iniciei a minha vida adulta com a palavra esperança na alma e no coração. Parti com o profundo desejo de encontrar o meu jardim onde medos, desesperos e dificuldades do passado, do presente e do futuro pudessem servir de fertilizante a uma terra suficientemente boa para fazer crescer e expandir uma árvore com raízes suficientemente profundas para enfrentar com resistência e robustez as intempéries previsíveis e imprevisíveis duma desejada e tão aguardada mudança de estação.


Hoje, ao revisitar esta eterna obra emblemática de Voltaire sinto a novidade dum desconforto que não tive da primeira vez. A narrativa parece sugerir que a personagem principal, já de idade avançada e vivida, fica então provida da maturidade suficiente para formular uma verdade universal que só a experiência acumulada lhe permite atingir; tornando assim linear a perceção do tempo. Porém o tempo psíquico é bem diferente. Umas vezes, a vivência e a sua elaboração seguem-se, outras vezes, acompanham-se lado a lado; outras, divorciam-se e muitas outras vezes ainda, a segunda fica em suspenso à espera de poder voltar à primeira. São os encontros e desencontros da ação com a elaboração que permitem a construção dum tempo interno que possibilita a formação de um caudal mais ou menos intenso de pequenas verdades universais que vão emergindo para logo se transformarem noutras novas e efémeras certezas. Se assim for, nesta dimensão interior deixa de haver um “antes” e um “depois”, mais um “durante” que nos impede de nos declarar velhos, sábios ou experientes porque, salvo doenças psíquicas graves, o trabalho interior da construção do eu encontra-se sempre em movimento.


Se, tal como afirma o poeta e médico João Luís Barreto Guimarães, o movimento é poesia e se o processo analítico for movimento, então um dos objetos da psicanálise é a poesia.


François-Marie Arouet, hoje, aqui chegada, agradeço-te por me teres impelido aos trambolhões a escutar a poesia da vida.


(*) Tradução livre


Referências Bibliográficas:

Voltaire, Romans et Contes, Ed. GF-Flammarion, Paris, 1966

Collection Littéraire Lagarde et Michard, XVIII Siècle, Ed. Bordas, Paris, 1985


Imagem: da autora "Árvore com raizes"



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