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Por uma Psicanálise irreverente

O livro de Antonino Ferro, Pensamentos de um psicanalista irreverente, Guia para analistas e pacientes curiosos,1 afasta-nos, céleres, da charla e do crachá.Erige-se, emérita, como uma das mais entusiasmantes obras, rota própria das mais nobres, altas e lúcidas que, em contramão, se publicaram nesta terra assombrada do saber psi, terra ensimesmada pelo tédio e atropelada pelos muitos livros ruminantes da encosta.

Antonino Ferro, um mestre exaltante e siciliano da psicanálise contemporânea, ombreia aqui com os melhores. Com o historiador Christopher Bollas, com Thomas Ogden, escritor de livros de ficção, com o filósofo-editor J.-B. Pontalis, com o musicólogo excelentíssimo Michel Schneider e, pairando sobre todos eles, ombreia, qual pássaro paradipsíquico, com o génio galês de Adam Phillips.

São estes autores, que escrevendo para o lado, cortam o vento e vão em frente.

São eles quem nos assegura que depois do futuro virá a psicanálise. Não a psicanálise subjugada a um novo cientismo que, por sua vez, estará subjugado ao desenvolvimento do capital. Não.

Perante uma psicanálise dirigida da América, que abandona os conceitos de id e de pulsão, em favor dos conceitos de ego e de cognoscível, centrando-se, para o efeito, nas questões de ajustamento social e comportamento orientado para a realidade, reivindica-se, aqui, uma psicanálise nómada, não especializada na leitura dos horários exactos.

Numa concepção cartográfica, o inconsciente já não é memória ou monumento, ele é devir e trajecto. «Os lapsos, os actos falhados, os sintomas são como pássaros que batem com o bico na janela. Não se trata de os interpretar. Trata-se antes de assinalar a trajectória deles, para ver se podem servir de indicadores de novos universos de referência susceptíveis de adquirir uma consciência suficiente para inverter uma situação.»

E quem hoje poderia passear, como Gérad de Nerval, uma lagosta pela trela e entrar com ela nos cafés da cidade? Talvez só Antonino Ferro, na sua coragem e nesta carta de probabilidades de erosão terrestre.

Dialogando com o discípulo Luca Nicoli a sua poiética, ele estabelece, desde o início, como pórtico, três questões angulares que desafiam o falso e sulcam todo o seu discurso:

– «Em primeiro lugar, creio que os jovens analistas devem defender a sua possibilidade de serem jovens.»

– «Em segundo lugar, creio que os jovens analistas se devem defender daquele excesso de ortodoxia que os impede de desenvolver novas ideias, e que mais uma vez tem que ver com o problema da idade. Portanto, creio que todos, não apenas os jovens analistas, temos de nos defender daquilo que sabemos: todo o conhecido deveria realmente deixar de nos interessar.»

– Ou ainda, e por outras palavras:

«Tal como a poluição daquilo que sabemos sobre um paciente é catastrófica no trabalho clínico, ela é igualmente catastrófica na teorização, onde teorias e modelos deveriam ser conhecidos e depois rapidamente esquecidos.»

Tiremos o chapéu a um livro que vai para lá da intenção dos seus autores. Livro que nos vacina contra o Kyrie eleison, Christe eleison psicanalítico e nos inclina para uma zona menos iluminada, onde poderemos ver algo mais da noite.

1 Ferro, Antonino, Pensieri di uno psicoanalista irriverente, A cura di Luca Nicoli, Milão: Raffaelo Cortina Editore, 2017.

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