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PHOENIX e o Cinema ou a arte de renascer

“O que obtemos ao juntar um doente mental com um sistema que o abandona e o trata como lixo?”

No filme a narrativa atinge o seu clímax quando Joker dispara no talk show uma pergunta que funciona literalmente como gatilho para nos atingir a todos ferindo-nos de morte.

Numa canção dos anos 70 Roberta Flack dizia que a música lhe lia a alma. Em português a homonomia referente à palavra “interpretar” coloca psicanálise e artes performativas num plano comum sugerindo a irresistível ligação entre cinema e psicanálise. Desenvolvendo-se num espaço intermédio entre realidade e fantasia, o cinema inquieta-nos, interpela-nos, denuncia-nos. Em vertigem onírica e numa festa dos sentidos, o cinema lê-nos a alma para nos devolver a áreas recônditas da nossa mente numa linguagem geradora de sinuosos paradoxos entre intimidade e exposição, culpa e expiação, destrutividade e reparação.

Redefino a interrogação: o que obtemos ao juntar o universo fantástico e burlesco da BD com um momento histórico em que a artificialidade do “politicamente correto” vai gerando extremismos ideológicos para o qual convergem utopias obsoletas e distopias niilistas? Estes movimentos tornam-se férteis no repúdio de índole moralista contra uma natureza pulsional e conflitual, mas em face da qual os mecanismos de razoabilidade e de sublimação construtiva parecem escassear e fracassar, comprometendo a necessária posição depressiva para que os pares binários sejam integrados dando lugar a novas constelações. A violência dos nossos tempos esconde-se por vezes na (boa) intenção de sanar injustiças negando a própria diferença, branqueando ou silenciando a expressão da angústia em vez de a escutar, reconhecer, re-significar. Essa é a função psicanalítica da mente, garante de saúde mental e património de cultura e de humanização.

Mea culpa do capitalismo desenfreado ou filho bastardo do mito de uma normalidade forjada à força da clivagem e da exclusão das partes loucas/moles assistimos à construção de um phatos transvestido do horror-do-horror-sem-amor, assim nos surge este Joker que merecemos. Metáfora caricatural dessa falha na civilização, delírio, estigma, mentira, humilhação e desamparo combinam-se de forma a gerar violência como sucedâneo identitário, homicídio como subtração perversa de vinculação, riso descontrolado como impossível cicatriz da palavra.

A gargalhada, assinatura sonora desta personagem, rompe o silêncio do desmentido, rasga o espaço transicional para nos colocar no seu não-lugar, viola impiedosamente o nosso interior para o povoar de sensações que vão da estranheza ao medo, da revolta à compaixão. Espécie de grito primal, este som tanto nos remete para o choro do recém-nascido à procura de continente sonoro, como ecoa qual pergunta repetida até à exaustão, queixume acusatório e desmedido que dará por fim lugar ao escárnio e ao gozo triunfal através do qual só se existe na anulação dos demais.

Nesta tela (quase) perfeita, a nota final vai para o desempenho deste ator de excelência cujo próprio nome denuncia essa qualidade de se esgotar e de se renovar em cada entrega.

Killing me softly… Como se para que a mente se desenvolva e para que a pulsão de vida se cumpra seja necessário matar partes de nós das quais esperamos renascer em arrebatamentos amnióticos e viscerais, porém virtuosos. Há filmes assim: que nos derrubam, nos matam e, nesse turbilhão onírico, finalmente nos salvam.

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