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O Último de Nós



O “The Last of Us” série norte-americana, estreada em Janeiro deste ano em Portugal, numa das plataformas de streaming disponíveis, é baseada num jogo de vídeo já com dez anos, que fala num futuro apocalíptico em que a Terra teria sido destruída pelo impacto de um vírus que ao entrar em contacto com o sangue humano, seria mortal.


O drama narra um futuro pandémico devastador para a humanidade, deixando os seres humanos à beira da extinção. O vírus transforma as pessoas em canibais/zombies e espalha-se rapidamente depois de uma simples mordidela. Algumas décadas depois, os poucos sobreviventes que restam vivem constantemente em viagem ou em quarentenas (guetos delimitados por muros, soldados, armas, regras rígidas) “protegidas” por funcionários do governo. É neste cenário que o protagonista, que teria perdido a filha na pandemia, é contratado para levar uma adolescente para fora da zona de quarentena opressiva onde vive. Os dois devem encontrar um grupo de rebeldes paramilitares que se revoltou contra as autoridades do governo.


A jovem Ellie infetada pelo vírus, apesar de não apresentar os sintomas da doença, o que leva os resistentes a acreditar que a imunidade dela pode ser a chave para encontrar a cura do vírus e potencialmente salvar o que resta da humanidade.


À partida esta série teria tudo para me afastar rapidamente: baseada num jogo de vídeo, zombies, imagens de terror, cenários criados digitalmente. No primeiro episódio a série foi vista por cinco milhões de espetadores e este número foi aumentando chegando a atingir valores cumulativos de 30 milhões por episódio.


Mas então onde quero chegar com estas palavras, até agora escritas? A pandemia que todos vivemos fez-nos pensar num futuro apocalíptico. Havia aplicações que nos davam conta do número de infetados que surgiam diariamente, bem como das mortes que iam acontecendo pelo mundo inteiro. Para todos nós agora existe ap. e dp., ou seja antes da pandemia e depois da pandemia, como se houvesse dois anos em que a vida ficou em suspenso. É frequente ouvir as pessoas referirem-se a acontecimentos pessoais desta forma. O medo, a angústia de morte esteve presente em cada um de nós levando-nos a funcionar de forma controlada, com comportamentos modificados e rituais de limpeza e desinfeção que nos remetem para o obsessivo compulsivo, mas aqui de forma intencional para controlar o medo e nos proteger da contaminação pelo vírus Covid.


Por outro lado os diferentes períodos de confinamento, isolaram as pessoas e deixaram-nas confinadas às suas casas, deixando de haver uma saudável interação social que caracteriza o funcionamento humano, pois somos seres relacionais desde ainda o espaço seguro do útero materno, quando já estamos atentos e reativos a alguns acontecimentos da realidade. Neste período tínhamos intencionalmente de evitar os relacionamentos e a expressão natural de afetos no nosso comportamento. A distância entre as pessoas que era recomendada e as máscaras tornaram os outros estranhos e ameaçadores se não cumprissem estas regras. Era um regime rígido que tinha como objetivo proteger a nossa integridade física mas ameaçava a nossa saúde mental.


Nesta série podemos pela fantasia assistir a toda esta realidade exponenciada a um nível catastrófico. A ameaça, o isolamento, a restrição, a paranoia, a agressividade, como resultado de um vírus que dizimou o planeta Terra.


Mas depois, e é este depois que me encantou e me fez assistir a toda esta primeira temporada, vamos encontrar a combatividade da personagem principal (Joel) que, apesar do medo e da depressividade pela perda da filha, começa a lutar para sair do gueto (“locais protegidos”) e aceita a missão de levar a adolescente de que é encarregue, para um objetivo maior, salvar a humanidade. Assistimos à sua inicial resistência em ter qualquer vínculo afetivo com Ellie, até porque a mesma o faz lembrar a filha perdida, mas progressivamente vamos observando a construção de um vínculo afetivo poderosamente forte em que a relação se vai estreitando a todos os níveis. É comovente assistir à dimensão do afeto que por fim já existe entre os dois, claramente a expressão projetiva de um amor filial, mas real.


Mas temos de tudo nesta série. Se não quiserem ver os 10 episódios assistam apenas ao terceiro episódio, onde surge o desenvolvimento e desfecho de uma história de amor, entre dois homens, absolutamente bela em cada detalhe que nos é permitido vislumbrar.


Depois assistimos a cidades completamente destruídas, degradadas e desertas que reconhecemos apenas por uma placa com nome ou uma qualquer referência que a identifique. Há uma escassez de bens essenciais com fome e miséria. Um colapso da civilização em termos da sua expressão humana que contrasta com a beleza estonteante da natureza que é profundamente impactante e nos deixa maravilhados em alguns momentos. Como o desaparecimento da civilização permitiu à natureza recuperar. Sentimos uma forte ligação estética e de pertença com a Terra (“mãe)”.


O poder da amizade, diferentes formas de expressão da agressividade, saudável ou patológica, o bullying, o abuso sexual, o poder tirânico, a expressão de amor incondicional, a dinâmica entre Eros e Thanatos, a resiliência, está lá tudo.


Esta série é claramente um tratado sobre a vida e o que realmente importa numa ficção extremamente bem conseguida. E talvez valha a pena pensar sobre qual pode ser o poder de um vírus na nossa identidade individual e coletiva.

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