1.
Com quem brincámos na infância? Quem permaneceu dentro de nós olhando carinhosamente a nossa criança?
O tempo só se suspende no Inconsciente e é lá que reencontramos a criança que fomos. De lá brotam sonhos: uns felizes, outros amedrontados, uns nostálgicos, outros apenas curiosos. De lá também emergem memórias, construídas com alguém.
2.
Há melodias que nos soam imediatamente à infância. Trarão com elas o reencontro com a voz que nos cantou ao adormecer – a sua textura, o seu calor, a cor e luz de um berço, ou o cheiro da casa onde crescemos. Contrariamente a Freud, que confessava alguma indiferença perante a música, Theodor Reik tomou as memórias por ela evocadas como expressão directa do Inconsciente. Reevoca-se na música, talvez, o mais antigo encontro entre duas vozes que soaram, ora uma, ora outra, criando um novo timbre.
3.
Num coro, apenas se consegue cantar ouvindo os parceiros em redor. Se um dia já fomos (bem) ouvidos saberemos entender as vozes dos outros e co-construir um acorde. Pode então reviver-se no presente a antiga harmonia das duas vozes – ou mesmo um eco de dissonâncias passadas invadir-nos a pele.
No princípio desta peça de Erik Esenvalds, a voz fina de soprano convoca-nos, a solo, às imagens de um sonho; mas subitamente o coro inteiro entoa o coração do poema – “só ao dormir se esquece o tempo”- e toda uma densidade antiga e intensa se instala na música, e em nós. Só a duas (ou mais) vozes se pode mergulhar no lugar onde o tempo cessa a sua inexorável marcha. O lugar caótico e sincopado do Inconsciente, aonde paradoxalmente chegamos pelo tempo ordenado e ritmado.
4.
O que brota desse mergulho no Inconsciente depende muito daquilo que Sara Teasdale se interrogava neste poema: será que alguém sonha comigo? Para esse alguém também sou criança?
Cantar em coro é como brincar com as emoções, exprimindo-as, atirando-as ao colega do lado e segurando as dele para que não caiam da rede segura que é a música. É também brincar com as emoções do compositor, que um dia as traduziu em notas. E conseguir oferecê-las à criança do espectador que veio sonhar connosco.
Nesses (re)encontros pode surgir alguma beleza. Talvez a que procuramos indo ao encontro da criança do paciente, que deseja ser sonhada. E a que surge quando o paciente descobre que também pode sonhar com a criança do analista.
Only in sleep I see their faces, Children I played with when I was a child, Louise comes back with her brown hair braided, Annie with ringlets warm and wild.
Only in sleep Time is forgotten — What may have come to them, who can know? Yet we played last night as long ago, And the doll-house stood at the turn of the stair.
The years had not sharpened their smooth round faces, I met their eyes and found them mild — Do they, too, dream of me, I wonder, And for them am I too a child?
Sara Teasdale, Missouri,1912
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