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Dor e Glória: as Catacumbas de Almodóvar

Em Dor e Glória, Pedro Almodóvar narra-nos a história (de cariz auto-biográfico) de Salvador Mallo, um realizador de cinema em plena retirada depressiva. Jovem promissor, sobredotado, Salvador faz um percurso que o leva ao reconhecimento, encontrando-se, no momento presente do filme, preso à dor / sofrimento, no seu sentido mais amplo.

Deprimido, arredado da possibilidade de criar, o protagonista encontra-se preso a um corpo que apresenta grandes vulnerabilidades ditadas pelo envelhecimento e – sobretudo – pelas fragilidades somáticas. O sofrimento de Salvador é atroz…

Salvador recorda agora rupturas, perdas e separações que marcaram a sua vida adulta, e mergulha na sua própria infância (quiçá em busca da raiz do seu adoecer presente), romagem que Almodovár nos proporciona através de sucessivos flash-backs de enorme beleza.

O protagonista recorda-nos um momento marcante da sua vida quando, em plena latência, juntamente com a mãe, reúnem-se com o pai, que emigrara havia tempo para Paterna, uma aldeia pobre da Espanha franquista. O pai, com parcos recursos, instala a família numa habitação precária – uma catacumba -, ante o protesto veemente da mulher, que tudo faz para tornar cómodo e acolhedor o primitivo espaço. Para tal, recorre aos préstimos de um trolha analfabeto que, em troca de trabalhos de melhoramento na habitação, é alfabetizado pelo rapaz prodígio, Salvador. O dito trolha – homem sensível e com grande aptidão para o desenho -, não só embeleza a catacumba (ornamentando a cozinha), como retrata o jovem protagonista, em jeito de reconhecimento pelo que a criança lhe ensinara.

Pedro / Salvador, ao longo da vida, irão regressar repetitivamente a um espaço precário – o continente / invólucro tosco e desagradável, que a catacumba tão primorosamente retrata -, para dele se evadirem, através da criatividade.

Na vida adulta, o retorno a esse lugar infantil far-se-á através do adoecer físico e psíquico. Salvador deprime, adoece, precarizando a sua existência… e invólucro mental e somático. Porém, o protagonista consegue evadir-se do dito lugar que marcou a sua infância, identificando-se, quer à mãe, quer ao trolha, cujas vontades e habilidades haviam transformado a gruta original num espaço menos agreste e embelezado. A identificação com aquelas figuras materializa-se na criatividade que Salvador exercita, através da escrita de guiões e realização de filmes.

Diria que a transformação estética – o exercício criativo – permitem humanizar e revitalizar um lugar originalmente agreste, feio e repulsivo, revigorando um narcisismo frágil! A este propósito, revisitemos o apartamento de Salvador Mallo, lugar de extremo requinte e bom gosto [que é, na realidade, o apartamento de Pedro Almodóvar, em Madrid!]

No limite, a arte do protagonista constitui um rasgo resiliente, epítome de uma capacidade reparadora assinalável, também ela fortemente apoiada na infância! Ora, sadiamente, a esta singular capacidade transformadora que Salvador / Pedro detêm, no próprio filme, acrescenta-se o potencial reparador dos cuidados médicos e da escuta singular, que reenviará (digo eu!) para a nossa dama, a psicanálise e suas potencialidades transformadoras 😉

Almodóvar é um cineasta original, maduro e criativo, que nos oferece esta obra outonal. Dolor y Gloria es, además, una película de puta madre!

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