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Casas e Pessoas

Há casas cuja beleza começa no projecto (…)

Há casas feitas à medida do homem (…)

Eugénio de Andrade

A figura humana e a casa são dos primeiros temas que a criança representa nos seus desenhos. O tempo que lhes dedica e a concentração com que o faz revelam a importância que têm na sua vida. As primeiras representações gráficas da casa são por vezes curiosamente humanizadas, as “casas/pessoa”.

Para crescer, precisamos de espaços humanamente habitados, lugares de vida seguros e abertos ao mundo, que respondam às nossas necessidades vinculativas e de exploração. Um lugar de vida, uma boa casa, é um lugar onde podemos crescer em segurança e de onde podemos partir com entusiasmo e tranquilidade. Estes lugares constroem um Eu-casa interior, que nos acompanhará para onde quer que vamos.

Muitas das crianças e jovens colocados em instituições, em virtude de condições de existência muito difíceis que conheceram antes de aí chegarem, sofrem psiquicamente da ausência destes lugares de vida e têm, em consequência, importantes falhas na construção do seu Eu-casa. Consideram-se frequentemente portadores de alguma coisa de inaceitável, de inconfessável ou de injusto, em todo o caso de desabrigado ou não apresentável, e põem muitas vezes em marcha respostas ora depressivas ora violentas.

Quando a decisão de colocação numa instituição é tomada surge antes do mais a função protectora, reparadora e organizadora da casa/instituição e das pessoas que a habitam. O sofrimento que originou a institucionalização é, regra geral, facilmente reconhecido por todos. Mais difícil é o reconhecimento do impacto que uma separação, resultante da institucionalização mesmo que temporária, inevitavelmente traz à continuidade da vida psíquica, bem como das eventuais patologias que daí decorrem. Se a instituição pode proteger a criança ou jovem, comporta também uma perca de referências afectivas e espaciais, por vezes uma “des-territorialização” de si mesmo. Até se reconstruírem (ou construírem) continuidades internas e com o exterior, a criança ou jovem podem sentir-se a habitar uma terra de ninguém.

A sensibilidade para reconhecer e integrar na intervenção a compreensão desta dimensão do vivido subjectivo, torna-se essencial para que este espaço/casa possa desempenhar um papel positivo e não venha juntar-se ao sofrimento que o precedeu.

Também nestas casas, como em todas as outras, crianças e jovens precisam de adultos que conjuguem a capacidade de acolhimento e de aliança com o realismo e um olhar que as/os inscreva numa temporalidade aberta, que se filie num passado, num presente e num futuro, para que a vida possa continuar.

Não se pense que é fácil assumir uma tal função de suporte ao crescimento! O acolhimento de uma criança ou jovem põe sempre em marcha uma fantasia/projecto de “salvação” e de reparação de uma dimensão acidentada, sarar uma ferida, o desejo de oferecer algo de bom. Cada profissional se vê confrontado no seu dia-a-dia com realidades externas que atingem por vezes a insuportabilidade e sempre, internamente, com um ideal de perfeição que conflitua dolorosamente com os limites que o real impõe. Pessoas que precisam, também elas, de uma casa/instituição que contenha as suas inevitáveis angústias e dificuldades e que as ajude a pensá-las e a transformá-las. Tal como ocorre com cada criança ou jovem, são igualmente necessárias à vida e ao crescimento das equipas, casas/instituições suficientemente boas, em que cada um se possa sentir reconhecido, encontre o seu lugar, e possa sentir-se a contribuir para o projecto comum.

Imagem: Casas – Karl Schmidt – Rottluff – Paysage à Lofthus, 1911

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