A propósito da informação ou da suposta informação sobre a guerra na Ucrânia, dei por mim mergulhada num mar de dúvidas e com uma dificuldade crescente em formar uma opinião satisfatória sobre o conflito. Porque estaria eu a braços com essa dificuldade?
A questão histórica ou a questão da memória é um pouco central em todo o mundo. Assistimos a uma emergência de movimentos nacionalistas, ultranacionalistas, com diferenças significativas de cariz sectário, cristão, ortodoxo, maoista - em Portugal, Espanha, França, Itália, Alemanha, Polónia, Hungria, Turquia, Estados Unidos da América, China, Rússia. O revisionismo histórico alastra-se e faz parte de muitos discursos que são veiculados pela comunicação social, com mais ou menos tempo de antena em função da pegada ideológica dos seus acionistas.
Voltando à questão da memória, assistimos a um questionamento crescente sobre a Verdade histórica - valerá a pena, alega o Partido Alternativa para a Alemanha (AfD), partido ultranacionalista e anti-emigração, a Alemanha ter tido tanto trabalho para se redimir dos erros do passado?; valerá a pena, alega o Partido Popular de Espanha, considerar as palavras do Papa Francisco, instigando os Bispos Mexicanos a reconhecerem os erros dolorosos do passado cometidos pela Igreja católica durante a conquista e colonização espanholas do Novo Mundo? (1) As respostas vão surgindo, dolorosamente. Putin encerra o Memorial, pioneira organização de direitos humanos; Orbán corrige os curriculos escolares de forma a promover o orgulho nacional e o patriotismo, ocultando algumas derrotas históricas; os barões republicanos nos EUA limitam a possibilidade de se abordarem livremente nas escolas questões de interpretação histórica, raça ou identidade, aprovando-se no estado do Texas um projeto lei que proibe os debates sobre a escravatura na disciplina de História. Poderíamos prosseguir com exemplos de todos os continentes, dos mais próximos aos mais distantes.
O que tem a Psicanálise a dizer sobre este fenómeno? A denominação "nacionalismo sectário" talvez nos ajude a pensar. Sectário, secções, divisões da mente. Estamos perante um fenómeno psíquico que todos conhecemos bem na nossa clínica e que foi sendo teorizado e aprofundado ao longo da história da Psicanálise, através dos conceitos de Clivagem, Projeção e Identificação.
Interligando a frase popular ´dividir para reinar´ com o fenómeno da clivagem, estaremos perante uma luta psicológica, uma guerra psicológica nas palavras de Vamik Volkan, Psicanalista que esteve recentemente connosco no ciclo de conferências da SPP (2). Uma guerra psicológica entre o bem e o mal, entre aquilo de que nos orgulhamos na nossa história como povo, como nação, como coletivo e aquilo de que nos envergonhamos, que nos provoca ferida narcísica e humilhação, confronto que assume este carácter quando transposto para a ideologia.
A Verdade é, assim, estrategicamente coartada, de forma consciente pela cúpula de poder decisivo e de forma inconsciente pelo coletivo, que reconhece no seu líder a possibilidade de o resgatar do sentimento de humilhação, fazendo justiça e afugentando o "mal", projetado de todas as formas e feitios para fora, para o "outro", para o "estrangeiro", para o "contaminado".
Se, na época dos Romanos reinava uma certa forma de entretenimento das massas, com "Pão e Circo", no presente reina "Pão e redes sociais". Na Guerra de Informação e Propaganda são veiculadas, nos media e nas redes sociais, Verdades, Mentiras e tentativas de refazer a História. Tudo acontece com a instalação estratégica de um sentimento geral de informação em que vemos a guerra ao minuto, quando, na verdade, estamos, ainda, muito mal informados sobre os bastidores e os alimentadores da Guerra na Ucrânia. O estatuto de Guerra de Informação é muito mais amplo que o estatuto de agressores e vítimas e é fácil cair numa narrativa simples (3).
O Mundo e o Humano, para a Psicanálise, nunca foi branco e preto e não nos escudamos - tal como o nome deste Blogue sugere numa ligação indelével à História da Psicanálise - a elaborar o sofrimento psíquico e "A Peste" que reside em todos nós, no nosso íntimo, na nossa Natureza e na nossa História.
Assistimos, nesta ascensão de movimentos ultranacionalistas, de esquerda e de direita, a uma interação entre a metáfora de 1984 de George Orwell, em que a verdade é censurada e imposta uma verdade alternativa, sectária, omitindo partes da histórica e a metáfora explorada no Admirável Mundo Novo por Aldous Huxley em que, abolindo o sofrimento e os sentimentos "negativos", nos sentimos particularmente informados e até temos a possibilidade de ver a guerra ao minuto, em direto, sem margem para dúvidas, sem margem para o sofrimento do desconhecido.
Simplesmente "não sei" ao certo o que se está a passar e só poderei saber, ir sabendo, nos próximos meses largos, num processo em que é necessário tolerarmos o desconhecido, esforçarmo-nos para diversificar as nossas fontes de informação e apoiarmo-nos, mais do que nunca, na História.
Referências Bibliográficas
(1) Wargel, C. (2022). A grande guerra da informação. Courrier internacional, Abril Nº4, 28-31.
(2) Volkan, V. (2022). Transgenerational transmissions, chosen traumas and entitlement ideologies in the context of world affairs. Conferência SPP "Vozes Externas & Vozes Internas", 25 Março, via Zoom.
(3) Tharoor, I. (2022). Como os ultranacionalistas reescrevem a história. Courrier internacional, Abril Nº4, 34-37.
Imagem "Veritas" de Raffaelle Monti, estátua em mármore branco, 1853, retirada de https://www.casa-museumedeirosalmeida.pt
Representação de Veritas, Deusa da Verdade na mitologia Romana, filha de Saturno e mãe de Virtude. A Deusa levanta o véu, numa simbologia de revelação da Verdade e pisa uma máscara como recusa da mentira. Aos pés, encontra-se uma serpente enrolada, que significa o mal.
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