Ao contrário do que a geografia nos ensina, a Venezuela é uma ilha. O que poderia ser uma metáfora torna-se uma dura realidade, quando tentamos compreender o seu drama humanitário e a sua crise constitucional. Não deixa de ser uma cruel ironia que o berço do realismo mágico, se tenha transformado na actualidade concreta da sobrevivência.
O país com as maiores reservas de petróleo do mundo sofre de uma emergência humanitária complexa: pobreza extrema, uma crise alimentar grave, o êxodo massivo da população, a repressão, a violação dos direitos humanos, a hiperinflação e o colapso do Estado. A queda do preço do petróleo e o saque de uma nação, que recebeu bilhões de dólares em menos de uma década, expõem a corrupção. As longas filas para comprar alimentos e medicamentos desenham um fio de infinita miséria. Ouvir a desesperação dos venezuelanos é uma experiência traumática.
Não se trata da fome que se remedeia, mas da fome extrema. Crianças que choram por comida, idosos esqueléticos agonizando de fome; todos de olhar suplicante. A ausência de medicamentos, de material médico básico e a insalubridade dos hospitais, tornam omnipresentes a fome, a doença e a morte evitável.
O ataque à liberdade de imprensa (1) e a negação da realidade pela propaganda do regime, criaram uma atmosfera orwelliana. Não existe uma ausência de liberdade a priori, mas antes uma perda dramática da liberdade, pois a Venezuela era uma democracia desde Janeiro de 1958.
A Venezuela é a Miss Universo da violência. Teve quase quatro vezes mais mortos do que a Síria (2) em 2018. Os venezuelanos não parecem temer uma guerra civil, vivem numa guerra contra o civil. Os paramilitares ou “colectivos” com o seu cortejo de morte, espalham o terror nos bairros pobres e nas manifestações, silenciando a fome com calibre militar.
Nas últimas eleições para a Assembleia Nacional, a oposição ganhou por maioria. O TSJ do regime, desconheceu a Assembleia e tomou para si os seus poderes. A Procuradora Geral considerou inconstitucional esta manobra e teve que fugir apressadamente. O regime de Maduro respondeu com uma “Assembleia” paralela e “ganhou” umas eleições presidenciais sem a oposição, sem o reconhecimento de grande parte da comunidade internacional e sem o respaldo da constituição venezuelana. O regime formalizou a sua natureza ditatorial.
Em Janeiro deste ano, Juan Guaidó assume o cargo de Presidente Interino, evocando os artigos 233, 333 e 350 da constituição venezuelana. Foi um acto de coragem que corporizou o desejo da maior parte dos venezuelanos: responder à crise humanitária, recuperar o fio constitucional e convocar eleições livres. Guaidó discursa no plural, em nome de uma transição legítima e da reconciliação dos venezuelanos. A Venezuela não precisa de um líder messiânico, mas de reconquistar a responsabilidade pelo seu destino.
(1) 102 jornalistas foram agredidos, só no mês de Fevereiro de 2019. Fontes: Asamblea Nacional e Colegio Nacional de Periodistas de Venezuela.
(2) Fontes: Syriam Observatory for Human Rigth e Observatório Venezolano de la Violencia. Cálculos por cem mil habitantes nos dois países .
Foto: Federico Parra da AFP. A imagem capta o momento em que milhares de venezuelanos levantam as mãos, na cerimonia de tomada de posse de Juan Guaidó como presidente interino da Venezuela.
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