People have to change from within Jane Goodall 1
Quão perplexos ficamos, enquanto membros da espécie humana, perante a ideia de uma galáxia abandonada a uma existência sem sentido?
Acompanhamo-nos das estrelas desde sempre, crescemos enquanto civilização devido à orientação resultante da sua simples permanência no céu. Como uma “mãe suficientemente boa” que continuamente encontramos, apesar de temporários desaparecimentos, num eterno jogo de luz e sombra, dia e noite, ir e voltar – um fort-da que nos proporciona a alegria do reencontro, se tolerada a ausência pela confiança gerada na relação.
Em primeira instância, como afirmava Carl Sagan (Cosmos, 1980), somos feitos de poeira de estrelas e, esta verdade essencial, como que a vamos considerando ao longo das eras, na cultura e através da criação.
Vejamos, por exemplo, Dante Alighieri (em 2021, comemoram-se os 700 anos da sua morte) que, n’ A Divina Comédia, um longo poema tripartido, atribui às estrelas um papel organizador e de esperança. Não tenho, nem poderia ter a intenção de fazer uma análise da obra, apenas desejo salientar um detalhe assinalado por Vittorio Montemaggi (Dante 2021, Episódio 3, BBC Radio 4), que suporta a minha ideia. Assim, Dante, vê-se envolvido numa viagem cujos eventos minuciosamente relata à medida que vai percorrendo três Reinos – Inferno, Purgatório e Paraíso – que compõem as três partes do poema, terminando, cada uma delas, com a palavra estrelas. No final da primeira parte, Dante, à saída do Inferno, contempla as estrelas no firmamento, para se deparar, no final de O Purgatório, no cimo de uma montanha querendo chegar até elas. Em Paraíso, o nosso poeta está nas estrelas e dirige-se para a cidade celestial Empíreo, guiado por Beatrice, seu amor de juventude.
Penso que a viagem de Dante n’ A Divina Comédia pode entender-se como um movimento evolutivo, da inveja para a gratidão, do ódio para o amor, imperando os processos secundários sobre os processos primários, em que um ego forte e integrado se vai tornando real e caminhante até um outro real fora de si. Não será este, afinal, o destino último de uma viagem analítica?
Montemaggi associa, ainda, os três Reinos apresentados por Dante a três esferas internas existentes em todas as pessoas, como que remetendo para uma interação entre movimentos de natureza esquizo-paranóide, no exercício de uma mentalidade manipulativa e fechada, e movimentos de natureza depressiva, num registo mental de tipo exploratório e simbólico. E é, aqui, que, na minha perspetiva, pode ler-se a mensagem de esperança, pois, ainda que, por vezes infimamente, o livre-arbítrio estará sempre ao nosso alcance, delimitando o negativo e potenciando forças libidinais. Com efeito, se formos conscientes da existência interior dessas três esferas, poderemos conduzir-nos exercendo uma liberdade de escolha que, espera-se, resulte num posicionamento ético perante a vida.
Clarificamos, deste modo, também, o papel da consciência na existência humana, consciência cujo desenvolvimento se faz por via do acesso ao inconsciente, talvez a maior descoberta de Freud. Com a consciência, poderá vir a experiência íntima de contacto com o próprio Cosmos, cujos mistérios nos impelimos a desvendar – abrimos os olhos e vemos esse universo que nos contém, reconhecendo-lhe a existência, e essa dádiva é retribuída com generosas centelhas de beleza!
Mas as sociedades contemporâneas, movidas pela ideia de um determinado crescimento económico, e ancoradas em cinismo, parecem movimentar-se entre o Inferno e o Purgatório, atirando-nos para as malhas dos processos primários, algo bastante visível nos desafios que atualmente enfrentamos a nível global, designadamente no que concerne a crise climática e, entre outros, o problema do negacionismo.
A poucos dias da Conferência da ONU sobre alterações climáticas (COP26) que decorrerá em Glasgow de 31 de outubro a 12 de novembro, recordo-me de leitura de um artigo no jornal The Guardian, que me despertou a atenção pela natureza do alerta que veiculava e que, progressivamente, foi abrindo um grande silêncio dentro de mim. Nesse artigo, reportava-se uma conversa com o Físico Brian Cox, por ocasião da estreia da sua mini-série de 2 episódios, Universe, na BBC. Nela, o cientista explora a ideia de que “a localização do nosso planeta em relação ao sol, bem como os eventos únicos ao longo de biliões de anos que criaram a Terra, a tornaram precisamente o sítio certo para que a vida com sentido pudesse florescer e evoluir”. Donde, será de supor que existam “muito poucas civilizações por galáxia” e que, “se a Terra morrer ou se a civilização não persistir, seja por que motivo for, um evento externo ou a nossa própria ação, é possível que o sentido seja eliminado da galáxia para sempre”.
O cientista lembra-nos, portanto, a catástrofe de que estamos tão próximo e que, indubitavelmente, nos posicionaria no centro do Inferno de Dante, assim representando a supremacia do negativo, na atuação daquela que seria, segundo André Green (The work of the negative, 1999), “a propriedade mais essencial da categoria do negativo”, a de “contestar a própria ideia de unidade”.
O paralelo com a Psicanálise pode fazer-se pois são psicanalíticas as ideias que nos remetem para Thanatos, destruição, ataque ao elo de ligação, bem como para o seu inverso, Eros, laços libidinais, criação de sentido… São psicanalíticas as ideias que nos lembram a delicada missão que temos em mãos – a de proteger a vida nuclearmente, também nas nossas galáxias interiores. Uma Análise, com efeito, remeter-nos-á para o dever de zelar pelo lugar da criação de sentido, que é dentro de cada um de nós, mas , também, na relação com os outros, e que transportamos ao longo dos tempos como uma herança filogenética. Contamos, para tal, com a confiança de que, embora externamente tudo pareça por vezes aproximar-se da fragmentação, prosseguimos internamente coesos, preservada a unidade por ação de uma relação autêntica, passível de conduzir a conhecimento e transformação – a Relação Analítica.
1- Etologista e Ambientalista em entrevista ao jornal The Guardian de 20 de outubro de 2021.
Imagem: Yayoi Kusama “Infinity mirrored rooms – Filled with the brilliance of life” (2011/2017)- Instalação atualmente em exposição na Tate Modern, Londres
Comments