À minha frente uma jovem empurra um carrinho de bebé. Vejo que não traz máscara e fico muito feliz pela bebé. Sorrimos. Por respeito para com os bebés nunca os cumprimento de máscara. A mãe autoriza-me a cumprimentar sem máscara a sua filha. Do seu carrinho-ovo a menina oferece-me um sorriso que é pés, braços e corpo inteiro e ficamos por ali numa conversinha de gente. A mãe entra na conversa, falo do sorriso social e ela diz que também já reparou. Como aprendi com João dos Santos, para comunicarmos com uma criança é preciso que nos coloquemos num lugar de onde ela nos possa ver inteiros. Um bebé não pode ver um adulto por detrás de uma máscara. Nem a si próprio, nas expressões entrelaçadas com o Outro.
Regresso ao consultório para um encontro de supervisão com uma colega que trabalha numa creche. Aqui, as histórias são outras. Sentamo-nos as duas a tricotar janelas em histórias de desencantar… e afectos da Inquietude (1).
São bebés que passam 6-7 horas por dia, 5 dias por semana, com adultos de cara tapada por máscaras. Algumas destas crianças nunca viram sem máscara as pessoas com quem passam uma parte considerável das suas vidas. Os pais chegam com os filhos ao colo ou pela mão, os que já andam. Os bebés passam dos colos e mãos dos pais para os colos e mãos de auxiliares de caras tapadas por máscaras. Há quem diga que esticam os bracinhos e que desenlaçam as mãos e os colos numa transição pacífica, ao ouvirem os seus nomes por detrás dos panos, mas há quem assegure que não. Os pais não estão autorizados a avançarem para além da zona de fronteira, a porta de entrada. Uma educadora obtém uma autorização especial para baixar a máscara na zona de fronteira e assim receber com um sorriso um bebé em grande aflição, mas é proibida de falar e, portanto, o bebé poderá ver o sorriso da educadora mas não poderá ouvir o sorriso, nem palavras, nem o seu nome, que só ouvirá quando a educadora voltar a colocar a máscara. O pai está perplexo diante deste puzzle humano fragmentado, mas faz silêncio. Nas salas há bebés que dificilmente sossegam, há bebés ainda no sono de que despertam em sobressalto, há bebés que brincam e há bebés que parecem apáticos. Há adultos com estranhos babetes por cima das bocas que dão a papa aos bebés e há adultos que mudam fraldas, que fazem rodinhas, que sentam os bebés nos tapetes ou nos seus bibes-colo, que adormecem os bebés, que falam e que cantam canções que mal se ouvem, porque os sons se abafam nos panos. Onde estão os lábios? e os narizes? e os queixos? e o movimento expressivo do rosto? e as primeiras falas feitas disso tudo? A pitinha ainda põe ali o ovo ou bateu asas e foi fazer o ninho noutras paragens? Nas salas há adultos com caras tapadas por máscaras que limpam as lágrimas e os ranhos das caras dos bebés e há bebés que agarram os panos e que os puxam para baixo, mas os panos, quais fisgas, voltam para trás e arrumam-se outra vez nas orelhas. Nas salas há adultos que falam mais alto do que deviam para que se perceba aquilo que os bebés costumam entender com a ajuda do rosto inteiro e há adultos que gritam de um lado para o outro para se fazerem ouvir. Oh! é uma canseira, procurar que todo um corpo expresse o que um rosto prende e então os adultos gesticulam muito e ficam exaustos! Os adultos respiram mal e dormem mal, chegam mesmo a ter insónias. Por vezes sentem-se culpados pelos silêncios que guardam. Mas vem uma brisa social sanitária onde aconchegam a consciência e, sonolentos, adormecem. Às vezes são assaltados por estranhos pesadelos noturnos em que bebés transhumanos choram quando adultos mostram o seu verdadeiro rosto, tal como ele é. Às vezes também têm sonhos bons, sonham que abrem de novo os sorrisos e que os bebés riem a bandeiras despregadas. São sonhos entrelaçados de restos diurnos, porque é mesmo isso que fazem quando tiram as máscaras, porque é isso que um bebé precisa e que um adulto responsável faz.
Uma equipa de Investigadores da Universidade de Grenoble-Alpes tem já resultados consistentes sobre os danos que o uso de máscaras em infantários e creches está a provocar ao desenvolvimento emocional e social dos bebés e nas suas competências linguísticas. Por cá, vamos ouvindo especialistas preocupados com os danos que os confinamentos provocaram nas aprendizagens escolares. Entretanto, o dano causado à saúde mental dos bebés continua no mais absoluto silêncio. E há mesmo quem procure, respondendo sabe-se lá a que agenciamentos internos, novos paradigmas que afirmem que a um bebé basta o olhar de um adulto para se construir como pessoa e que a resiliência do bebé humano é tão grande que tudo aguentará. À indignidade e à indecência sem limites que faz tábua rasa da investigação sobre a construção da vida psíquica de um bebé teremos que responder com a mais firme defesa do seu bem-estar emocional e a ética do humano.
Sentadas no tapete, eu e a minha colega, imaginamos como poderemos construir pontes para um modificável com educadoras amordaçadas e bebés em risco. E hoje, Dia Mundial da Criança, lemos ainda um poema de Eugénio de Andrade, pois que é ainda e sempre o sonho que nos comanda a vida.
Há dias em que julgamos que todo o lixo do mundo nos cai em cima depois ao chegarmos à varanda avistamos as crianças correndo no molhe enquanto cantam não lhes sei o nome uma ou outra parece-me comigo quero eu dizer: com o que fui quando cheguei a ser luminosa presença da graça ou da alegria um sorriso abre-se então num verão antigo e dura
(1) Referência ao livro de Teresa Ferreira, psicanalista, uma voz firme e intransigente na defesa da saúde mental dos bebés e das crianças. Paula Torres de Carvalho e Teresa Ferreira, Histórias de Desencantar. Os afectos da Inquietude, Editora Âncora, 2002.
Imagem: fotografia de David Hurn’s
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