Um ano depois estávamos cansados de olhar o mundo através de janelas e ecrãs…
Há umas semanas dei por mim a pensar como tem sido mais difícil este confinamento face ao primeiro, entre Março e Maio de 2020. “Viciada” num pensar psicanalítico, procurei encontrar imagens e palavras dentro de mim que pudessem construir um retrato do meu interior, sinalizando também aquilo que na realidade externa o tinha alterado. Na psicanálise, as imagens internas ajudam-nos não só a encontrar palavras e sentidos para descrever realidades psíquicas, mas também nos conduzem a uma melhor perceção da realidade externa, sejam acontecimentos da realidade, seja a relação com o outro exterior a nós. Noutras palavras, é a contratransferência que nos permite compreender as pinceladas da nossa realidade emocional, desenhadas em conjunto com o outro.
Foi nessa viagem interior que vi como esta segunda vaga de confinamento já não era o estado de alerta dos primeiros meses, o medo do desconhecido, o estranho que tinha entrado nas nossas vidas e em todo o universo humano. Já não era a inquietação inicial, a urgência em devorar informação que roubava o espaço do sonho, do passado, transformando-se num eterno presente e numa imobilização do tempo. Nem a urgência de ir para o terreno ajudar os outros, a necessidade de construir um cordão solidário que nos protegia do medo da morte, e que ao mesmo tempo nos dava um sentir de pertença à humanidade, de proximidade dos outros, e de reencontro com o essencial da vida…
Por isso, para mim, o primeiro confinamento teve tanto de terrível e assustador – e violento na vida de muitas pessoas – como de belo, de humanista, de pertença e reencontro não só com o outro em sofrimento, mas também com o espaço da casa, das pessoas da família que, no decorrer de vidas numa aceleração descontrolada, se tinham desencontrado umas das outras.
No confinamento inicial, se é verdade que muitos meninos fechados em casa deixaram de ter acesso à riqueza da aprendizagem presencial, às trocas com os colegas, nalguns casos à melhor refeição do dia ou à possibilidade de escaparem a um ambiente doentio e violento em casa, também temos que reconhecer que muitas crianças puderam finalmente disfrutar da companhia dos pais, que o seu tempo se passou a desenrolar ao seu ritmo de crianças, agora menos empurradas para intermináveis atividades extracurriculares e festas de aniversários todos os fins-de-semana.
Agora, com este re-confinamento interminável que se tem imposto, em diferentes, confusas, e sempre novas modalidades, sofro, sofremos, de cansaço pandémico. Se as máscaras são por vezes irrespiráveis no sentido literal, a falta de estar com o outro diferente de nós e extra-família, e de olhar uma paisagem outra que não a nossa casa e o bairro para o passeio higiénico, são ainda muito mais irrespiráveis…
Lembrei-me de uma paciente que sofrera de claustrofobia e que no início da pandemia, fechada em casa, voltou a ter sintomas. Lembrei-me dela para perceber que aquilo que sentia agora era também uma espécie de claustrofobia, de estar confinada com as mesmas pessoas, nos mesmos lugares, imaginado o resto do mundo todo ele fechado e separado. Uma universalidade que deixara de ser pertença humanitária para se tornar numa ausência de alternativas – à semelhança da memória (pré-consciente) infantil da ausência de alternativa a pais insuficientemente bons, que a minha paciente transportava consigo.
A minha associação livre conduziu-me também para a fantasia que tinha na minha biblioteca interna sobre uma vida extraterrestre em Marte, confinada numa estação espacial e num invólucro de astronauta, e de como eu sempre imaginei que a vida assim não teria qualquer sentido…
Há uns dias, durante o passeio higiénico nas bonitas redondezas do lugar onde vivo, dei por mim com uma ligeira náusea física, a náusea de comer todos os dias a mesma coisa… E a diretora da escola das minhas filhas, a caminho dos 90 anos, dizia-me ao telefone que se tivesse força física mudaria de lugar todos os móveis da sua casa…
Como explica o neurocirurgião Sinjay Gupta (2021), a mudança é um alimento essencial para o cérebro…
Se o primeiro confinamento nos surpreendeu com o “estranho”, mas nos devolveu a casa, e nos salvou (e às crianças) de uma vida louca, afogada no meio de milhares de atividades externas, e nos trouxe o tempo para parar, para escutar o nosso mundo interior e às pessoas ao nosso lado, o segundo amarrou-nos à “repetição do mesmo”.
No meu dicionário interno encontrei também a palavra “desalento”, “esmorecimento”, e lembrei-me de Bowlby (1969, 1973)(1), psicanalista, que descreveu as reações dos bebés a uma separação prolongada da mãe: inicialmente a ansiedade – o bebé fica aflito e procura a presença da mãe – e a zanga, seguindo-se o desespero, e finalmente a desvinculação. Tal como para um bebé a separação da mãe traz angústias de morte, e as reações iniciais são de luta pela de vida (ansiedade e zanga), gradualmente transformando-se em desesperança e desistência, assim também o medo inicial da morte pela Covid se tornava, com o distanciamento físico continuado, num enorme cansaço e desalento…
E esta viagem associativa conduziu-me de seguida aos bebés na pandemia e ao cansaço das máscaras. Pensei nos bebés na fase da angústia do estranho – o bebé por volta dos oito meses que responde com stress à proximidade de uma figura não familiar porque imagina que que perdeu a mãe -, uma etapa do desenvolvimento fundamental que estabelece a ponte entre a fase pré-objectal e a constituição do objeto interno (Spitz, 1950)(2). Imaginei os bebés que passaram todos estes meses num infantário, desde muito cedo até muito tarde, rodeados de caras tapadas, e de sorrisos escondidos que têm que ser adivinhados nos olhos, caras mascaradas que se tornam mais indiferenciadas e indiferenciadoras, dificultando também a eleição da educadora como objecto familiar.
Talvez tenham sido todas essas ideias, agora deslaçadas e antes condensadas como num sonho, que se tornavam no meu – nosso – desalento. A ideia de uma pandemia que possivelmente irá terminar dentro de alguns meses, mas cujas sequelas talvez perdurem muito mais tempo… Não temos a violência da guerra, mas estamos talvez perante uma outra violência, sem sangue, a violência da falta do contacto humano e das trocas com o diferente…
Valha-nos o instinto de sobrevivência ou, na terminologia de Freud, a “pulsão de vida”: um jovem de 18 anos conta-me que depois de ter sido apanhado pela polícia numa festa, já os amigos planeavam uma próxima. E acrescenta: “Sabe, é a escolha entre o risco das multas ou de enlouquecer…”
Imagem: Fotografia da autora
(1) Bowlby, J. (1963). Attachment and Loss, Vol 1: Attachment. London: Hogarth Press and the Institute of Psychoanalysis.
Bowlby, J. (1973). Attachment and Loss, Vol 2: Separation: anxiety and anger. London: Hogarth Press and the Institute of Psychoanalysis.
(2) Spitz, R. A. (1950). “Anxiety in infancy: a study of its manifestations in the first year of life”. International Journal of Psychoanalysis, 31: 138-143
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