Numa entrevista, Eduardo Galeano disse faltar ao mundo Vitamina E, de Entusiasmo, acrescentando que o seu significado etimológico é ter os deuses dentro (enthousiasmos<en+theos).
Passaram 20 anos da súbita e prematuríssima partida de Teresa Ferreira, aos 62 anos, no dia 18 de Agosto de 2001. Arrancada, no auge da sua plenitude profissional, a muitos que com ela conviveram, aprenderam, trabalharam, refletiram. Eclipsada da vida de muitos que com ela estabeleceram uma relação de verdadeira reciprocidade afetiva. A palavra Entusiasmo sintetiza, como nenhuma outra, a vitalidade e a paixão colocada em tudo o que fazia. No plano profissional, tanto como pedopsiquiatra quanto como psicanalista, Teresa tinha definitivamente os deuses dentro.
Passaram 20 anos, e a Teresa faz(-nos) falta! Muitos colegas da sua geração a evocaram, à época, com lucidez emocionada, em variadas homenagens e publicações, narrando histórias, detalhando o seu trajeto e ressaltando as suas inúmeras qualidades. Por isso, sinto-me livre agora para navegar, in memoriam.
Passaram 20 anos e recordo com nitidez a “chefe” — assim chamada carinhosamente — na Equipa 2 da João Penha, ao Jardim das Amoreiras, abrigo do busto de João dos Santos, seu mestre. Com a generosidade do seu coração amplo acolheu-me, já formada em Psicanálise na chegada do Brasil, como acolhia os muitos jovens pedopsiquiatras e psicólogos em residência e estágio. Levou-me com ela à Casa da Praia, projeto que muito lhe dizia e se tornou uma das suas bandeiras. Fui com ela ao Largo do Limoeiro onde sensibilizava os jovens Juízes em formação para as complexas questões da realidade psíquica de uma criança e da “incapacidade materna” num país tão marcadamente Mariano. Na Misericórdia testemunhei a supervisão dos chamados “casos difíceis”, para os quais lançava caminhos com o seu forte embasamento teórico e clínico. Também a acompanhei à Equipa de Sintra, dirigida por João Sennfeld, onde lutavam pela formação conjunta e articulação entre médicos de família e psiquiatras. Na televisão e nos mídias divulgava, contra o status quo da ciência positivista, o olhar e a compreensão psicanalítica. E na SPP dava formação e participava ativa e comprometidamente na vida científica. E…
Passaram 20 anos do III Congresso Europeu de Psicopatologia da Criança e do Adolescente, acolhido em Lisboa, onde se juntaram pedopsiquiatras e psicanalistas essencialmente franceses e portugueses. Três meses antes de nos deixar, lá estava a Teresa. Este ano, em que o tema do 52º Congresso da IPA foi O Infantil e o tema do XXX Colóquio da SPP será A Criança, o vazio deixado pela Teresa é ainda mais notório.
Passaram 20 anos e guardo como valiosa herança do seu património de reflexão e pensamento, o livro póstumo, belamente organizado por colegas-amigos. A ele recorro frequentemente. Dele dou conhecimento às gerações mais novas. Nele debruço-me, como se escutasse e usufruísse, a cada leitura, da sua companhia viva. Lá estão bem delineadas, as diferentes áreas a que se dedicou, em inúmeros artigos: a criança e os seus direitos; função materna; desenvolvimento infantil — normalidade e patologia; depressão infantil; intervenções terapêuticas na infância; teoria e intervenção psicanalítica. O título — Em Defesa da Criança: teoria e prática psicanalítica da infância — condensa a essência das lutas da própria Teresa: a criança e a psicanálise.
Passaram 20 anos e, na complexidade (Morin) da modernidade líquida (Bauman), na sociedade paliativa da transparência e do cansaço (Han), o mundo parece anémico e anestesiado, necessitado das qualidades-vitaminas que pareciam sobrar a Teresa.
Para a homenagear, à moda das brincadeiras das crianças, ocorreu-me um jogo de palavras. Poderia ser visto como uma vacina, de acordo com l’air du temps. Mas prefiro estar do lado da prevenção e da promoção da saúde, como Teresa estaria. Imaginei o Complexo Vitamínico Teresa Ferreira, cuja composição usaria as letras do seu próprio nome: duas letras E de Entusiasmo, para que o gesto espontâneo prevaleça e os deuses nos habitem; as outras duas letras E ficariam com a Ética que lhe era inerente; das quatro letras R, duas seriam a Resistência para os combates que sempre travou destemida e duas a Resiliência necessária para suportar as frustrações e as duras traições; A de Amor, ao quadrado, para conter o ódio e a inveja sempre presentes e destrutivos; o T de Transparência e o F de Frontalidade, qualidades gémeas da verdade, antagonizariam a insidiosa hipocrisia; o I de Indignação, teria grande peso no complexo vitamínico, fortalecendo a tolerância ao outro/não-eu nos tempos de pasteurização dos pensamentos e homogeneização das personalidades; e, last but not least, juntamos o S de Sabedoria, só alcançada pelos verdadeiros e legítimos mestres.
Teresa tinha os deuses dentro. Nós mantemo-la dentro, com gratidão e como inspiração, pela sua inesquecível marca de caráter, humanismo, paixão e profissionalismo.
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