Conservando uma tradição antiga, desloco-me anualmente para o mesmo local, onde mergulho de férias. Neste lugar intermediário, entre ria e mar, o tempo faz-se sentir de um modo bastante particular. O tempo das férias pode proporcionar experiências diversas, mas está intrinsecamente ligado ao (re)encontro com as memórias do tempo das férias da infância.
O mesmo sítio de sempre conserva, ano após ano, lugares, pessoas e rituais, que impelem à (re)construção dos cenários de outrora. No velho ancoradouro, lugar de transição, novas gerações de miúdos mantêm vivos velhos costumes, usando-o como plataforma de saltos acrobáticos sobre a ria. Na praia, o mesmo diálogo é mantido, resultando em tentativas efémeras de verificação da temperatura exacta da água do mar. Diariamente, barcos cumprem o horário da travessia trazendo de volta os que madrugaram para abastecer em terra, competindo com os veraneantes que ocupam grande parte da lotação, e que planeiam desfrutar de umas horas de praia. O desejo de mergulhar naquele mar suporta o duro percurso sob o sol de verão.
O tempo das férias, aqui, é vivido sob o domínio da sensorialidade, onde brisa, areia e sal constituem os principais ingredientes. Os dias prolongam-se, até que finalmente o sol se despede, desfazendo-se rosado no horizonte. O tempo é marcado através da cíclica transformação da paisagem marítima, imposta pela mudança das marés que, à mercê do ciclo lunar, denunciam a imposição da natureza.
Na baixa-mar, vastas línguas de areia penetram o oceano até que a fronteira entre areia e mar se dilui. Cada dia, as marés agregam todos os grãos de areia, condensando-os em formas perfeitas, num desenho irreproduzível. A água que enche as praias, esvai-se misteriosamente, revelando os tesouros do fundo do mar e pondo a descoberto o mundo que habitualmente se esconde nas profundezas marítimas. Aproveitando a maré baixa, novos veraneantes arriscam tentativas de apanhar um punhado de bivalves para o jantar. Debruçados sobre o mar, remexem a areia até encontrar o petisco sob a forma de delícia marinha. No pico da maré baixa, uma fragrância característica inunda a atmosfera, a maresia avança, penetrando os espaços e incrustando o ambiente de férias.
Respeitando a habitual cadência, o tempo da preia-mar substitui o anterior, voltando a encher de água salgada as praias, numa vagarosa lentidão. Veleiros solitários tiram partido da maré alta atravessando languidamente o canal, cruzando as águas guiados pela bonança marítima. Sob a areia da praia, toalhas estendidas são surpreendidas com súbitas vagas atrevidas que o mar lança, desafiando com as suas habilidades molhadas. As correntes marítimas imprimem uma doce ondulação ao mar, embalando os corpos que submergem nas suas águas.
No seu apogeu, a Lua, com o seu brilho único, ofuscando qualquer estrela, traz consigo as marés vivas, ostentando a magia das águas: na maré baixa os areais estendem-se, espraiando-se até perder de vista; na preia-mar regressa a água que inunda velozmente todos os canais, lambendo as soleiras das portas, ameaçando invadir as casas.
Assistir, e participar, desta sucessiva renovação é também viver sob os desígnios da natureza que diariamente se sobrepõe, magnânima, a qualquer vontade ou força humana. Resta-nos aproveitar. Salgar os corpos e demorar sob o sol de verão.
Imagem: Fotografia da autora (verão 2023)
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