A pandemia deixou-nos menos capazes de exprimir emoções, mais fechados sobre nós próprios? O medo subiu de tom, ao vermos um vírus mudar drasticamente as nossas vidas.
Ao mesmo tempo, penso que a distância e o isolamento social nos confrontaram com a saudade e a necessidade dos outros. De os ver, tocar, abraçar de lhes dizer a importância que têm para nós e o que sentimos por eles.
Todas as idades enfrentaram desafios, mas foram os idosos quem mais foi violentado psiquicamente, ao sofreram com o isolamento e ao verem discutido o valor da sua vida. A ideia de haver vidas que valem mais do que outras é indescritível. As notícias trouxeram-nos esta questão, que angustiou todos, pelo medo do que pudesse acontecer com cada um de nós, os que somos velhos e com cada um de nós, sobre os nossos velhos. Todos temos pais, tios, avós, e somente a ideia de os perder deixa-nos inexoravelmente mais pobres.
A velhice é difícil de ser definida, pois é um processo que envolve a maneira como o idoso se vê e se percebe e a maneira como é visto e percebido pelos outros. Essa inter-relação de olhares e visões é que vai constituir para cada um o conceito de velhice. Não existe “a velhice”, mas velhices. Muitas vezes, a conotação sociocultural sobre envelhecimento contém preconceitos, quando é representada como uma etapa de perdas sucessivas: capacidade cognitiva, abalo estético sobre a autoimagem, sentimento de inutilidade.
O modo como se dá o confronto desses valores contribui para que esse momento da vida se torne, ou não, mais sofrido e difícil. E o idoso, dependendo da sua complexidade psíquica, e do momento atual, corre o risco de se identificar com essas representações e com os vários estereótipos existentes, o que dificulta que ele possa ser ele mesmo.
No seu livro “Velhice”, Simone de Beauvoir (1990) diz-nos, “é uma surpresa, um assombro, perceber-se velho. O espelho mostra o que os outros percebem, mas a pessoa reluta em aceitar a mudança em si própria. Dessa forma, velho é sempre o outro …”. O susto que o idoso tem ao perceber-se velho relaciona- se com o descompasso entre o que o espelho lhe mostra, ou seja, um corpo envelhecido, com rugas e cabelos brancos, e a vivência interna íntima, subjetiva, que tem a ver com sua história pessoal, que nem sempre está de acordo com o que os olhos vêm.
Sabe-se que, na sociedade atual, as pessoas idosas têm, com frequência, um tipo de vida que conduz a sentimentos de solidão, apatia e insatisfação. Principalmente nas grandes cidades, onde ocorre de forma mais evidente o isolamento emocional e social, como consequência do pouco contato entre os vizinhos e com a comunidade em geral, ao lado de relações interpessoais limitadas ou mesmo ausentes.
Não sabemos o que nos espera ainda. Saímos, mantendo o distanciamento social e a etiqueta respiratória, voltámos ao trabalho, aos restaurantes, aos jardins. Tentámos voltar a um sítio do “passado normal”, mas ele já não existe. Mas os avós voltaram a abraçar os filhos e os netos, sem tanto medo. Houve almoços e jantares e tempos juntos, celebrando até uma proximidade, algo perdida para alguns, mesmo antes da pandemia.
Rejubilo pela realidade de não termos chegado a esse ponto monstruoso, de decidir sobre o valor da vida. Mas nada está ultrapassado.
E depois há ainda os outros idosos, os que vivem em lares, sem contato com as suas famílias, isolados do mundo e dos afetos. A esses coube-lhes a árdua tarefa de sobreviver na aridez de espaços fechados, sem relação com o exterior a não ser por chamadas telefónicas. Mesmo agora na maior parte deles, são só permitidas visitas escassas e com marcação prévia. O desamparo, o desespero, a tristeza gritou alto, dentro de muitos destes nossos velhos.
E depois temos as centenas de velhos que morreram em lares. Alguns, vítimas do Covid, muitos do mau trato, do abandono, da falta de cuidados básicos que os deixou num estado de debilidade catastrófica até ao fim. Nestas circunstâncias, faz sentido a frase de Philip Roth (2007) no seu livro “Homem Comum”, através da personagem principal: “A velhice não é uma batalha; a velhice é um massacre”
Gostava que o fim deste texto fosse de esperança, mas penso que tem de ficar em aberto fazendo ressonância no mundo interno de cada um de nós.
Danielle Quinodoz, psicanalista de 75 anos, disse numa conferência em 2011:
“É o choque frente à beleza, ou momentos fortemente emotivos, ou ainda a descoberta de uma ideia poderosa que me transforma. Quanto mais envelheço, mais esses segundos, que nos fazem tocar com os dedos a eternidade, me parecem formidáveis e, mais ainda, tenho desejo de transmitir aos outros a ideia que eles existem.”
Imagem: Robert Carter
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