“A face não tem profundidade nem planos mais baixos. É, precisamente, lisa. Carece de interioridade. Face significa ‘fachada’ (do latim facies)” Byung-Chul Han
Aquilo que distingue um objeto tridimensional de um bidimensional é a sua possibilidade de ser olhado de diferentes ângulos. Também uma das maiores riquezas do trabalho psicanalítico é o permitir olhar questões internas de diferentes perspectivas, conferindo tridimensionalidade e profundidade ao pensamento.
A propósito do recente post de Inês Gomes, gostaria de colocar aqui um outro olhar sobre o fenómeno das Selfies, aproveitando para lançar o desafio para que o nosso Blog, espaço de reflexão da SPP, se torne também um espaço de debate e de diversidade de olhares.
Nas palavras de Inês: “Ao contrário do defendido por alguns acredito que a Selfie tem, para além desta possibilidade de reconciliação com o próprio, a potencialidade de traduzir o encontro com o outro. ‘Vamos tirar uma foto nossa’ – o individuo integrado no grupo, ninguém fica de fora.”.
Poderá a Selfie reconciliar com o próprio? Por definição, torna-se aditivo aquilo que é incapaz de possibilitar uma função reparadora ou transformadora…
Quanto ao “encontro com o outro”, talvez valha a pena distinguir as selfies (Eu próprio) das autofotografias de grupo, que eu chamaria de welfis (we, nós, em relação uns com os outros, que procuramos ficar juntos na fotografia)
A “rapariga bonita”, que Inês nos apresenta, a ensaiar inúmeras fotos do seu rosto, surge-me internamente como num filme, construído a partir de memórias de outras Selfies que presenciei. Vejo-a na praia, de costas para o mar (na tentativa de dar um cenário azul ao quadro), completamente alheada de tudo o que a rodeia, das pessoas que por ali vão passeando à beira-mar, e dos jovens rapazes que bem perto jogam à bola, cujos troncos desnudados revelam uma masculinidade emergente.
Aquela rapariga está mais focada em si, ou melhor, na sua imagem, do que no Outro. O olhar do desejo parece dar lugar à busca de si pela imagem. Não é esse justamente o problema de Narcisco (narkhé = torpor, como em narcótico), que, ao procurar-se através do seu reflexo na água – e não através do olhar do outro -, não consegue encontrar-se, acabando por se afogar em si mesmo?
Recordo o “estádio do espelho”, de Lacan (1936)[1] , momento a partir do qual a criança reconhece a sua imagem no espelho. Ao contrário do que acontece aos bebés antes dos 6 meses (ou aos animais), que ao olharem-se no espelho julgam ver um outro semelhante, ela tornou-se capaz de aceder à dialética de ser ela que está na imagem e simultaneamente não ser ela (é só uma imagem), inaugurando a entrada no mundo simbólico. Por isso, diz-nos Lacan, o outro está sempre presente como forma de reconhecimento do próprio. Ou seja, a identidade da criança forma-se sempre através da relação com o outro, naquilo que os olhos maternos espelham, disse-nos mais tarde Winnicott (1971)[2].
Se é verdade, como tão bem a autora enfatiza, que os contos infantis revelam (e desvelam) a importância do espelho, também é preciso assinalar como este reflete diferentes lugares simbólicos. Assim vejamos:
A madrasta que pergunta ao espelho se é a mais bela, o qual responde ser a sua enteada Branca de Neve que se tornara a mais bela, assinala o problema da rivalidade entre mãe e filha (Bettelhein, 1976)[3]. Aqui, ao contrário de Narciso, que se procura unicamente em si mesmo, estando o outro-diferente ausente, na “Branca de Neve”, o outro-objeto rival está bem presente, e a valorização de si é procurada pela batalha na conquista do terceiro, o príncipe…
Já o patinho feio, que se reconhece como um belo cisne ao ver a sua imagem refletida no lago, demarca-se de Narciso, porque este reconhecimento só foi possível após ter olhado os outros cisnes que ali nadavam, percebendo ser semelhante (diferente de ser igual), numa função identificatória.
Como disse Winnicott, primeiro existimos para o outro é só depois para nós mesmos.
O problema de Narciso não é o facto de se procurar a si mesmo, mas de o fazer através de uma imagem, sem profundidade, porque o outro, diferente e separado (no mito, só lá está Eco a repetir tudo o que ele diz), não está presente para lhe devolver uma existência com significado, ou seja, com uma tridimensionalidade simbólica que a superfície do lago, bidimensional, não possui.
Ao contrário, a imagem que a criança vê refletida nos olhos da mãe é uma imagem interna: o seu valor, o seu encanto, a sua existência.
Assim também é a imagem que o paciente vê refletida nos “olhos” do psicanalista – nos afetos que ecoam na sua voz, nas interpretações, na disponibilidade emocional -, um espelho que, ao contrário do lago de Narciso, não lhe devolve um reflexo, mas uma outra imagem, uma outra forma de se olhar a si mesmo.
A adolescente que fica duas horas a embelezar-se ao espelho, imaginando possíveis encontros amorosos na festa onde irá à noite, também não se está a olhar ao espelho de Narciso. O outro está presente – o outro que ela imagina que vai seduzir, e a outra, terceira, rival, que ela vai derrotar, ao conquistar o “príncipe” para si.
Mas aquela que passa tempos infindáveis a auto fotografar-se procura ficar bonita para quem? Para os “Likes” das redes sociais, na tentativa de uma valorização anónima de um narcisismo frágil? Ou para devolver a si mesma uma imagem que internamente permanece pouco nítida?
Diz-nos Byung-Chul Han (2016)[4], filósofo: O que gera adição ao Selfie não é um enamoramento ou uma vaidade narcísica, mas um vazio interior”
Sabemos como os alicerces da identidade e do narcisismo são tão fortemente questionados durante a adolescência. Sabemos que o adolescente procura avidamente novos tijolos na construção identitária – os grupos, a idealização de artistas ou figuras públicas – como forma de recriar uma identidade abanada pela necessidade de desidealização das figuras parentais que a sexualização pubertária traz. E sabemos como o corpo volta a adquirir uma importância vital, como forma de recriação identitária e reforço narcísico – as roupas como marca de pertença a um determinado grupo, ou a sintomatologia corporal adolescente (anorexias, etc.), são sinal disso mesmo.
Mas quais serão os novos modelos identificatórios da adolescência? Os “influencers” que influenciam através do número de likes?
E Byung continua: “no belo digital a negatividade do diferente foi por completo eliminada. Por isso ele é totalmente polido e liso (…). O seu signo é o da complacência sem negatividade: o Gosto”
A jovem das Selfies que surge no meu filme interno olha-se a um espelho, cuja imagem se perde em milhares de seguidores anónimos no Instagram, meio de comunicação dos adolescentes dos tempos modernos – uma comunicação onde não só a palavra e a sua dimensão simbólica estão ausentes, mas cujas imagens são literais (bidimensionais) porque, no lugar de refletirem um olhar sobre o mundo externo ou uma utilização criativa e transformadora deste, incessantemente multiplicam imagens do próprio.
[1] Imanishi, H (2008). A metáfora na teoria lacaniana: o estádio do espelho. Bol. psicol v.58 n.129 São Paulo dez. 2008
[2] Winnicott (1971). Mirror-role of mother and family in child development. In Playing and Reality (2005). New York, Routledge Ed.
[3] Bettelhein, B. (1988). Psicanálise dos contos de fadas. Lisboa, Bertrand Ed.
[4] Han, B. (2016). A Salvação do Belo. Lisboa, Relógio D´Água Ed.
Imagem: René Magritte, “A Reprodução Interdita” (1937)
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