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Ritmos ou Algoritmos?

No XI Colóquio de Psicanálise e Cultura do Porto, coube-me comentar (*) uma mesa-redonda introduzida por um brevíssimo trecho do filme “Alice” de Tim Burton.

O tema – A Civilização e os seus (Des)Contentamentos – instalava a priori o sentimento de mal-estar, pois a mente deseja os contentamentos e as harmonias ilusórias da civilização.

Mal-estar.

Ilusão.

(Des)Contentamentos.

Temas belamente orquestrados na sua incómoda dissonância pelo texto introdutório de Jaime Milheiro: “No Tropel dos Bisontes” (**)

Civilização ou bisonte?

Distopia ou utopia?

De um lado, a desesperança tecno-robótica-vale-da-morte, de outro, a narrativa não saturada, projetando oniricamente a sobredeterminação do tema em pensamentos onírico-poéticos e éticos. Tal como um sonho, espaço potencial e privilegiado para acolher e processar o estranho-familiar e os monstros tanáticos que nos assombram?

Como civilizar a pulsão? Educar, governar e psicanalisar, permanecem utopias…

Talvez a grande des-coberta esteja ainda por cumprir e a ciência do sonho se transforme no sonho da ciência: o lugar onde ética-estética-poética podem fazer valer “violinos e artes e afetos”.

Lidar com a ambivalência é um esforço apreciável e nada apetecível para a mente. Em vez do compasso binário primordial e apaziguador da cantiga de embalar, vivemos contra-tempos des-sincopados. Coração em sobressalto, desassossegos e a mente rejeitando distopias e arritmias, anseia pela ilusória tranquilidade da utopia harmoniosa.

Canto de embalar, advindo dos diálogos precoces mãe-bebé, tecendo o sonho e o encontro na ilusão estruturante? Ou canto da sereia das “tecno-profecias de eterna felicidade”?

Ritmos ou algoritmos?

Freud aborda a necessidade da ilusão (1927) através da religião como sistema de crenças apaziguadoras e protetoras face ao desamparo humano.

Qual a ilusão proposta pelo mundo atual e qual o mal-estar na/da civilização? Quais são os contentamentos e os des-contentamentos que o supostamente admirável mundo novo traz?

No lugar das pulsões, a religião, no lugar da religião, a ciência? Our Lord, substituído por Our Ford ou Our Freud?

O texto Civilization and its Discontents (Freud) escrito em 1929 e publicado em 1930, é contemporâneo do Brave New World (Aldous Huxley), escrito em 1931 e publicado em 1932.

Huxley denuncia o perigo que ameaça a humanidade, se não fechar os ouvidos ao canto da sereia da falsa noção de progresso — “a ciência, a tecnologia e a organização social deixaram de estar ao serviço do Homem; tornaram-se os seus amos” —antecipando desenvolvimentos das tecnologias reprodutivas, das sugestões no decurso do sono (hipnopedia), do condicionamento e da manipulação psicológica.

1932 é ainda o ano da ascensão de Hitler na Alemanha. O totalitarismo espalha-se pela Itália, Espanha, Portugal e União Soviética. O momento histórico nos E.U.A. é marcado pela “grande depressão”.

Henry Ford, exemplifica o trabalho alienante, caricaturizado em 1936 em “Tempos Modernos” de Chaplin, com todos os seus mal-estares e des-contentamentos.

O que havia de moderno naqueles tempos? O que há de pós-moderno hoje? A passagem da utopia à distopia: o negativo, o incerto, o incontrolável, o relativo, o vazio?

Da máquina a vapor, à eletricidade, à era digital, deparamo-nos agora com a inteligência artificial (IA), no limiar da 4ª revolução tecnológica mundial.

Admirável ou abominável mundo novo?

O que consideramos progresso no mundo dos clones, do 3D, das cryptomoedas, da robótica avançada, da inteligência artificial, dos carros autónomos, da nanotecnologia com seus inovadores materiais, da biotecnologia na área da engenharia genética e das técnicas implantáveis no corpo?

Caminhamos para promessas omnipotentes de felicidade eterna com inovações na saúde, na independência laboral e nas ligações globais? Ou caminhamos apocalipticamente para a ameaça do Big Brother, das farmaco-profecias da Big Pharma, das alterações climáticas e do ciberterrorismo?

Avanço tecnológico de vida, possibilitando ligações ou avanço tecnológico de morte, em desenfreado tropel para o precipício? Como nos colocarmos ética e subjetivamente na turbulenta contemporaneidade? Promoveremos a liberdade ou a alienação?

Na globalização progressiva, o homem sapiens-demens (Morin), liquefeito (Baumann) e hipermoderno (Lipovetsky) habita, segundo Han, a sociedade do cansaço (depressão) e paliativa (algofobia), uma sociedade caracterizada por Déjours de “main-tenant” (do “ter à/na mão” agora, imediatamente). Submergido pela falta de sentido e pela cultura do vazio, bombardeado pela hiper-(des)informação, (des)articula-se em superficialidades e consumismos estéreis e compulsivos.

Para Huxley “o preço da liberdade, e até da simples humanidade, é a vigilância eterna.” Vigilância denota paranóia, estado de funcionamento primitivo da mente. Pode indicar também o esforço exigido ao psiquismo para pensar, processo não natural (Bion), obrigando à complexa ligação entre cognição e emoção em dinâmica e oscilatória (des)construção.

Para a psicanálise e, parafraseando Huxley, “o preço da liberdade, e até da simples humanidade”, não seria certamente a vigilância eterna, mas provavelmente o pensamento eterno: a possibilidade de suportar o negativo e a incerteza como saída para o conflito pulsional.

Poderão a individualidade/diversidade, a arte/beleza/verdade e a cultura/civilização florescer em tempos tão fragmentados e confusionais? Poderemos recuperar alguma utopia, através da cultura e suas significativas expressões humanizadoras?

O Chapeleiro passa o filme a desafiar Alice com uma charada: “Porque se parece um corvo com uma secretária?”

No final, ao despedirem-se, Alice implora-lhe a resposta e ele, olhando-a profundamente, diz: não faço a menor ideia.

Imagem – Filme “Alice” de Tim Burton

(*) Melícias, A. B. (2018). Ritmos ou algoritmos? Comentário à Mesa “Admirável Mundo Novo” no XI Colóquio do Porto de Psicanálise e Cultura – A Civilização e os seus (Des)Contentamentos. Nov. 2018. Não publicado

(**) Milheiro, J. (2018). No tropel dos bisontes. Texto inaugural ao tema do XI Colóquio do Porto de Psicanálise e Cultura – A Civilização e os seus (Des)Contentamentos. Nov. 2018. Não publicado. https://coloquiopsicanaliseeculturaporto.org/

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