Fotografia: Jorge Rolão Aguiar
O domínio do durante
1.
A noite cai, a chuva cai. E o vento, a neve, as folhas caem e caem os
governos. Caem os mortos na batalha e os náufragos no mar, caem
bombas em Gaza. Agora. Caem cidades e civilizações. E sobre a nossa
noite toda cai o silêncio.
É da natureza das coisas, dizem. De resto, cai-se no mundo ao nascer.
Tudo é surpresa e duração, matéria, atracção. Vivemos no domínio do
acaso e da gravidade. Caímos em nós ou caímos em desespero.
A queda pode ser acto ou efeito do cair. Isto é: um durante ou um depois.
Dependendo da qualidade que lhe soubermos dar. Eu gosto da queda
enquanto durante. Obriga-nos a cair em nós. Ainda existe a hipótese de
a determos, essa queda, ou de a acompanharmos.
A queda é pactuar com o declínio. O que conta é a negociação que
conseguimos levar a cabo. Determinantes, mesmo, são os termos da
negociação e o nível do conflito que se instaura entre o corpo e a
gravidade. Somos a queda que conseguimos executar. Disse uma vez o
músico e compositor Paulo Curado a propósito da improvisação:
«Quando andas, não estás sempre a cair. No entanto, andar é cair para
a frente.»
Avançar na queda, percorrê-la, é saber do estado do mundo. Aconteceu-
me uma vez, de forma exemplar. No topo da Cordilheira do Laos, o
nosso autocarro parou. Na orla do precipício, vista soberba, mandaram-
nos sair da viatura. A montanha estava a desabar, lenta mas
concretamente. Não podíamos seguir em frente, era demasiado
perigoso. Devíamos ficar ali, à espera de que o desabamento parasse.
Ou não. Pânico!
Estávamos a pisar o deslizamento da terra, éramos carne viva dentro da
matéria que ruía, ou melhor: chafurdando nela. Éramos parte de uma
queda e demorámos um certo tempo a reagir, cada um à sua maneira. O
que mais me impressionou foi um grupo de homens asiáticos de meia-
idade: pegaram nas suas câmaras poderosas e começaram a filmar a
montanha. Não pareciam interrogar o acontecimento em curso:
simplesmente gravavam-no, tentando deter o movimento leve das areias,
como se fosse exterior a eles, ao seu corpo. Um espectáculo a acontecer
fora de si. Mas na realidade o corpo que filmava era parte do deslize, era
arrastado pela queda, objecto dela, e sujeito em queda ao mesmo tempo,
embora de forma inconsciente. Isto é: sem angústia. Eles apenas
aproveitavam o fait divers, essa emoção da viagem grátis, o
maravilhamento inesperado. Como se o mundo além da lente e o mundo
que pisavam com os pés bem assentes nas sandálias fossem duas
coisas distintas. Mas eram a mesma terra que se desmoronava, que
faltava ao encontro com a sua inteireza. Olhavam para a queda por via
indirecta, pelo olho da câmara, sem se darem conta de que nesse
movimento eles também caíam. Nesse ponto, comecei a perguntar-me:
não será a queda precisamente a inconsciência, a perda da inteligência
das coisas? E portanto: ao desabamento duplo da terra e dos corpos na
terra, não se somaria aqui uma terceira queda, constituída pela falta da
tomada de consciência em relação à queda que nos envolve?
Não estaremos todos assim, agora mesmo?
2.
Quedas há muitas, pois, e muitas formas de cair. Também há um
precipício instalado nos dias, na rotina. Nesse caso, basta exercer o
olhar, aguda e demoradamente, para deter a ruína do depois. É saber
negociar com a vertigem do hábito, dia após dia. O Casal X que o diga:
A fotografia que o Casal X colocou na moldura, por exemplo, é uma
citação evidente de Fellini e Giulietta em Veneza: bastante glam a dos
Fellinis, a do Casal X com o grau de impureza das selfies mal
conseguidas. Mas lá vão eles, X1 e X2, no Canal Grande, quase
exactamente como Federico e Giulietta, quase glam o suficiente para
dialogar com o original, embalados por um gondoleiro de camisola às
riscas cujo nome desconhecem; X1 com o seu chapéu preto e X2 com
um lenço de seda na testa protegem-se da chuva fina de maio. Entre os
dois, no centro da imagem, o homem, o leme, e na parte superior da foto,
o céu de Veneza, que mesmo nublado é espanto a irromper pelas
fachadas dos prédios. Magníficos, tanto os prédios como o céu. A
moldura é branca, óbvia. [Ah, o inferno dos infernos onde cada coisa é
tida como óbvia! — está escrito num ensaio sobre Joyce e stream of
consciousness guardado na biblioteca do Casal X, isto é: a escrita
enquanto busca vertical, seta que descreve a descida no maelström,
pode orientar a queda?]
Uma moldura ordinária que não faz jus à euforia da foto, à pose
excepcional do instante, está aqui, na cozinha dos X, entre as caixas de
bombons e o seu rum favorito. [A rum of one’s own, chamam-lhe,
parafraseando Virginia Woolf. Pergunta: o álcool será uma forma de
procurar a queda ou de a anestesiar?]
Está aqui há tanto tempo, essa moldura, que a foto começou a deslizar
no passe-partout, pela ranhura abaixo. Precipita o Casal X, moldura
adentro, vai caindo e X1 detém-se, de repente, a observar a queda que
se insinua pelas frestas da rotina.
Um dia qualquer, X1 regressa do trabalho e vê o sorriso do quadro ainda,
o brilho de dentes e olhos, o centro da imagem bem seguro, mas já
prestes a desaparecer. Dias mais tarde, sorriso e gôndola já foram
engolidos pelo passe-partout e só restam as riscas da camisola sob a
cara intransigente do gondoleiro, os abrigos que trazem na cabeça,
efémeros, mais o céu. Consegue ainda intuir o vento, as vozes no canal.
No calendário, as páginas sucedem-se. X1 esquece-se da foto, da queda
que se vai consumando, esquece-se de lhe anotar os efeitos, as
subtracções que provoca na vista geral. O processo é lento, irregular,
mas perfeitamente reversível. Bastaria extrair o papel da ranhura onde se
abismou. Entretanto, mais tempo passa, o gondoleiro também já foi,
ranhura abaixo. Ficaram as cimalhas dos prédios como um teatro aéreo,
vazio, onde a solenidade do cenário potencia o efeito devassador de um
silêncio forçado. Do desaparecimento do Casal X. É gradual, a queda.
Imperceptível enquanto acontece. Se não for o estrondo da aterragem a
despertá-los, X1 e X2 ficarão a mergulhar sonolentos no vaivém dos
minutos.
A aterragem do instante na queda coincide com o vazio total no espaço
da moldura. Será esse lugar branco, anódino, analgésico até, a alertá-los
para o perigo. A gravidade da rotina já engoliu por completo o céu de
Veneza, o chapéu feito cartola, a seda, a gôndola, os frisos do cais.
Desembarcarão a seguir numa manhã desprovida de qualquer emoção.
A não ser que os tome o impulso de desmanchar a moldura, a rapina,
para dela extrair novamente o prodígio do instante, reestabelecendo
contra a queda uma presença firme, um olhar consciente e imediato.
Para voltar a colocar esse depois no domínio do durante.
[Paola D’Agostino]
Kommentare