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Paola D'Agostino [Escritora]

Queda [ ıı ]


Fotografia: Jorge Rolão Aguiar


O domínio do durante

1.

A noite cai, a chuva cai. E o vento, a neve, as folhas caem e caem os

governos. Caem os mortos na batalha e os náufragos no mar, caem

bombas em Gaza. Agora. Caem cidades e civilizações. E sobre a nossa

noite toda cai o silêncio.

É da natureza das coisas, dizem. De resto, cai-se no mundo ao nascer.

Tudo é surpresa e duração, matéria, atracção. Vivemos no domínio do

acaso e da gravidade. Caímos em nós ou caímos em desespero.

A queda pode ser acto ou efeito do cair. Isto é: um durante ou um depois.

Dependendo da qualidade que lhe soubermos dar. Eu gosto da queda

enquanto durante. Obriga-nos a cair em nós. Ainda existe a hipótese de

a determos, essa queda, ou de a acompanharmos.

A queda é pactuar com o declínio. O que conta é a negociação que

conseguimos levar a cabo. Determinantes, mesmo, são os termos da

negociação e o nível do conflito que se instaura entre o corpo e a

gravidade. Somos a queda que conseguimos executar. Disse uma vez o

músico e compositor Paulo Curado a propósito da improvisação:

«Quando andas, não estás sempre a cair. No entanto, andar é cair para

a frente.»

Avançar na queda, percorrê-la, é saber do estado do mundo. Aconteceu-

me uma vez, de forma exemplar. No topo da Cordilheira do Laos, o

nosso autocarro parou. Na orla do precipício, vista soberba, mandaram-

nos sair da viatura. A montanha estava a desabar, lenta mas

concretamente. Não podíamos seguir em frente, era demasiado

perigoso. Devíamos ficar ali, à espera de que o desabamento parasse.

Ou não. Pânico!

Estávamos a pisar o deslizamento da terra, éramos carne viva dentro da

matéria que ruía, ou melhor: chafurdando nela. Éramos parte de uma

queda e demorámos um certo tempo a reagir, cada um à sua maneira. O

que mais me impressionou foi um grupo de homens asiáticos de meia-

idade: pegaram nas suas câmaras poderosas e começaram a filmar a

montanha. Não pareciam interrogar o acontecimento em curso:

simplesmente gravavam-no, tentando deter o movimento leve das areias,

como se fosse exterior a eles, ao seu corpo. Um espectáculo a acontecer

fora de si. Mas na realidade o corpo que filmava era parte do deslize, era

arrastado pela queda, objecto dela, e sujeito em queda ao mesmo tempo,

embora de forma inconsciente. Isto é: sem angústia. Eles apenas

aproveitavam o fait divers, essa emoção da viagem grátis, o

maravilhamento inesperado. Como se o mundo além da lente e o mundo

que pisavam com os pés bem assentes nas sandálias fossem duas

coisas distintas. Mas eram a mesma terra que se desmoronava, que

faltava ao encontro com a sua inteireza. Olhavam para a queda por via

indirecta, pelo olho da câmara, sem se darem conta de que nesse

movimento eles também caíam. Nesse ponto, comecei a perguntar-me:

não será a queda precisamente a inconsciência, a perda da inteligência

das coisas? E portanto: ao desabamento duplo da terra e dos corpos na

terra, não se somaria aqui uma terceira queda, constituída pela falta da

tomada de consciência em relação à queda que nos envolve?

Não estaremos todos assim, agora mesmo?

2.

Quedas há muitas, pois, e muitas formas de cair. Também há um

precipício instalado nos dias, na rotina. Nesse caso, basta exercer o

olhar, aguda e demoradamente, para deter a ruína do depois. É saber

negociar com a vertigem do hábito, dia após dia. O Casal X que o diga:

A fotografia que o Casal X colocou na moldura, por exemplo, é uma

citação evidente de Fellini e Giulietta em Veneza: bastante glam a dos

Fellinis, a do Casal X com o grau de impureza das selfies mal

conseguidas. Mas lá vão eles, X1 e X2, no Canal Grande, quase

exactamente como Federico e Giulietta, quase glam o suficiente para

dialogar com o original, embalados por um gondoleiro de camisola às

riscas cujo nome desconhecem; X1 com o seu chapéu preto e X2 com

um lenço de seda na testa protegem-se da chuva fina de maio. Entre os

dois, no centro da imagem, o homem, o leme, e na parte superior da foto,

o céu de Veneza, que mesmo nublado é espanto a irromper pelas

fachadas dos prédios. Magníficos, tanto os prédios como o céu. A

moldura é branca, óbvia. [Ah, o inferno dos infernos onde cada coisa é

tida como óbvia! — está escrito num ensaio sobre Joyce e stream of

consciousness guardado na biblioteca do Casal X, isto é: a escrita

enquanto busca vertical, seta que descreve a descida no maelström,

pode orientar a queda?]

Uma moldura ordinária que não faz jus à euforia da foto, à pose

excepcional do instante, está aqui, na cozinha dos X, entre as caixas de

bombons e o seu rum favorito. [A rum of one’s own, chamam-lhe,

parafraseando Virginia Woolf. Pergunta: o álcool será uma forma de

procurar a queda ou de a anestesiar?]

Está aqui há tanto tempo, essa moldura, que a foto começou a deslizar

no passe-partout, pela ranhura abaixo. Precipita o Casal X, moldura

adentro, vai caindo e X1 detém-se, de repente, a observar a queda que

se insinua pelas frestas da rotina.

Um dia qualquer, X1 regressa do trabalho e vê o sorriso do quadro ainda,

o brilho de dentes e olhos, o centro da imagem bem seguro, mas já

prestes a desaparecer. Dias mais tarde, sorriso e gôndola já foram

engolidos pelo passe-partout e só restam as riscas da camisola sob a

cara intransigente do gondoleiro, os abrigos que trazem na cabeça,

efémeros, mais o céu. Consegue ainda intuir o vento, as vozes no canal.

No calendário, as páginas sucedem-se. X1 esquece-se da foto, da queda

que se vai consumando, esquece-se de lhe anotar os efeitos, as

subtracções que provoca na vista geral. O processo é lento, irregular,

mas perfeitamente reversível. Bastaria extrair o papel da ranhura onde se

abismou. Entretanto, mais tempo passa, o gondoleiro também já foi,

ranhura abaixo. Ficaram as cimalhas dos prédios como um teatro aéreo,

vazio, onde a solenidade do cenário potencia o efeito devassador de um

silêncio forçado. Do desaparecimento do Casal X. É gradual, a queda.

Imperceptível enquanto acontece. Se não for o estrondo da aterragem a

despertá-los, X1 e X2 ficarão a mergulhar sonolentos no vaivém dos

minutos.

A aterragem do instante na queda coincide com o vazio total no espaço

da moldura. Será esse lugar branco, anódino, analgésico até, a alertá-los

para o perigo. A gravidade da rotina já engoliu por completo o céu de

Veneza, o chapéu feito cartola, a seda, a gôndola, os frisos do cais.

Desembarcarão a seguir numa manhã desprovida de qualquer emoção.

A não ser que os tome o impulso de desmanchar a moldura, a rapina,

para dela extrair novamente o prodígio do instante, reestabelecendo

contra a queda uma presença firme, um olhar consciente e imediato.

Para voltar a colocar esse depois no domínio do durante.

[Paola D’Agostino]

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