Fotografia: Jorge Rolão Aguiar
A proposta de um tema e as associações desencadeadas: a expulsão de Adão e Eva do Paraíso, a significar a queda do homem; a queda de Ícaro; o desmoronar da Torre de Babel (ou das Torres Gémeas); a queda de Édipo; a queda do anjo (ou A Queda de um Anjo, título do romance de Camilo); o conto de Albert Camus, «A Queda»; a queda no amor (fall in love); ter queda para…; as quedas no sonho; o medo (pânico, fobia) da queda a ombrear com o fascínio pelas alturas; os filmes em que a palavra «queda» aparece no titulo (o último, ainda bem presente, Anatomia de uma Queda, ou, há muitos anos, o filme de Hitchcock, Vertigo, a queda no amor e a queda da torre); as manchetes dos jornais que anunciam a queda de Biden, ou do Governo, ou das Bolsas ou do Muro de Berlim…
Impõe-se um sentido comum no uso dos diferentes usos do termo: uma mudança de plano, quase sempre com conotação negativa (descer das alturas para um nível inferior, terrestre ou infernal), e, se benigna, associada a um estado de não-saber e, portanto, de risco.
Há uma dimensão existencial inerente ao lugar da queda nas narrativas míticas que contam o desejo dos homens de ascender às alturas dos deuses, disputar com eles o saber, a riqueza ou a imortalidade, e se confrontam com o fracasso das suas tentativas, vendo-se na situação de impotência, de não-saber, de ter de trabalhar e de não escapar à morte.
A sabedoria de Siduri, a fazedora do vinho, a ecoar, quando lembra a Gilgamesh, o herói sumério, que não encontrará a imortalidade porque os deuses, quando criaram o homem, atribuíram-lhe a morte. Saber confirmado pelo pai dos deuses, Enlil: «Foi-te dada a realeza, tal era o teu destino, a vida eterna não era o teu destino.»
A queda do homem grego decorre da perda do sentido da justa medida (a húbris) que o leva a competir com os deuses, a erguer-se além da condição humana (a divindade, lembra Heródoto, é invejosa e importuna). O castigo será a recondução à medida humana: Édipo, o decifrador de enigmas e o mais poderoso dos homens, cego, vai errar por longos e penosos dias, acompanhado pela filha Antígona, até chegar a Colono, na Ática, onde será acolhido por Teseu e morrerá em paz.
O elevar-se do solo e contemplar as estrelas a fazer despertar o desejo do alto (desideratum a poder referir os astros, numa etimologia fantástica) e o risco da queda no nível inferior, o inferno.
Todavia, há um entendimento diferente da queda na cultura grega e no mundo judaico-cristão.
Freud, herdeiro da cultura judaica, leu a tragédia de Sófocles à luz do entendimento bíblico da culpa.
A culpa, se já aparece na tragédia grega, será potencializada pelo judaísmo: a expulsão do Paraíso, decorrente da desobediência a Deus, vai acompanhada pela persistência da queda (pecado original), que será não só de Adão e Eva, mas de toda a humanidade condenada à morte, e, especificamente, no caso da mulher, a dar à luz com dor e estar submetida ao marido, no caso do homem, a ter de trabalhar a terra para colher o alimento com o suor do seu rosto.
O «Novo Testamento» vai anunciar o resgate da culpa pelo sacrifício de Cristo, o filho de Deus feito homem, mas o caminho será longo e doloroso como nos conta o Apocalipse de João.
Também a queda na depressão, que Gonçalo M. Tavares (in revista do Expresso de 3/8/2024) evoca a propósito da depressão de Simone Biles: «A depressão como o poço onde se cai e que interrompe a marcha ou o salto ou a pirueta. No caso de Biles, interrompe tudo: os saltos, a marcha e, acima do mais, o próprio dia.» E explicita bem: a depressão não é uma queda rápida, mas uma queda lenta ou lentíssima, invisível para os outros e para o próprio, uma queda mental (os pensamentos a cair porque pesam) e a arrastar o corpo, os pés a afundarem-se, o corpo a ficar soterrado e sem possibilidade de respirar. Conclui, então, G. M. T.: «A depressão é estar com a respiração bem abaixo do nível da terra.» Cair no inferno?, perguntamos.
A novela A Queda (1956), de Albert Camus, apresenta a versão moderna (actual) do pensar na condição humana também atravessada pela ideia de elevação e queda.
Num sórdido bar de Amesterdão, Mexico City, Jean-Baptiste Clamence, no papel de juiz-penitente, sob o olhar inexpressivo do patrão-gorila, pratica a confissão pública sempre que se lhe oferece a ocasião, adaptando, como diz, a narrativa ao seu auditor.
Monólogo disfarçado de diálogo (o outro que se perfila como interlocutor é o leitor), A Queda, damo-nos conta, de confissão institui-se em requisitório contra o homem que julga impiedosamente.
Jean-Baptiste Clamence, no passado, advogado em Paris ao serviço de causas nobres (defesa dos pobres e desprotegidos), gozando de prestígio e admiração e sentindo-se acima dos outros («sentia-me um pouco super-homem», «filho de rei», «escolhido»), reinando no que designa por «luz edénica», auto-exclui-se, trocando a cidade-luz pelos céus cinzentos de Amesterdão, defendendo chulos e prostitutas.
E, sobretudo, apresenta-se como juiz-penitente, ele que execrava os juízes e recusava a religião como grande empresa de branqueamento.
Como entender o seu percurso? Com que visão do homem nos enfrentamos?
A grandiosidade, que J.-B. Clamence se atribui, é a da personalidade narcísica, sempre a ter necessidade de estar nas alturas, procurar a admiração e o aplauso, e a confrontar-se com a insatisfação e a melancolia. Também a incapacidade de amar porque, como diz, «não se pode amar sem ser amado». A auto-satisfação é destruída por um riso (o riso de Deus?), que ouve atrás de si, quando acendia o cigarro da satisfação, uma noite, numa ponte de Paris, e lhe traz à memória uma outra cena, também numa ponte: uma jovem mulher, com quem se cruza, que se suicida, atirando-se ao rio (a queda), e ele não socorre.
A culpa a impor-se, mas a culpa absoluta, que é sua e também de todos os homens, a ditar o seu papel de juiz-penitente: «Se não podemos afirmar a inocência de ninguém podemos seguramente afirmar a culpabilidade de todos.»
Mas como a acusação, que se faz aos outros, acaba por nos cair em cima, há que inverter o foco e começar por se auto-acusar para poder julgar, donde a figura do juiz-penitente que confessa experiências e fraquezas comuns a todos os homens.
O retrato que traça de si é de todos e de ninguém (uma máscara), mas quando o termina e o mostra aos seus contemporâneos, ele torna-se num espelho.
Longe está a visão trágica do homem, mas a dor continua a ter rendez-vous na comédia humana associando-se à queda.
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