Entrar no trabalho às nove, acabar de trabalhar às nove da noite. Muitos fins de semana ainda a trabalhar ou a fazer atividades associativas. Férias na praia, nas cidades, nas montanhas. Fins de semana em escapadinha, para relaxar.
E de um dia para o outro, a Covid-19 e ordem para ficar em casa. Proteção, segurança. E proximidade, atropelo, desordem, claustrofobia.
O espaço da casa não está habituado a tanta permanência. Conta com algumas noites, pedaços de dia, conta com o grupo familiar todo junto apenas às vezes. Por isso desorganiza-se, os habitantes também, confundem-se as vozes do teletrabalho, os sapatos espalhados na sala duplicam, os assentos ocupados por computadores ou papéis irritam os que não são seus donos, o empilhamento para criar espaço confunde os papéis de todos, isto não é meu, o que está a fazer nas minhas coisas, vê lá se te incomoda, tenho aqui este livro que também não é meu, que confusão vai por aqui. A casa que se suja a dobrar, a comida que tem de ser feita em quatro refeições por dia.
E a pouco e pouco, as descobertas.
Descobrimos que afinal temos recantos. A varanda dá um belo solário, é ótima para relaxar, protegida do vento. No corredor do fundo consigo ter mais espaço para fazer exercício do que nas aulas do ginásio. Do quarto dos miúdos podem tirar-se os brinquedos que eles não usam há anos, porque na verdade já não são miúdos e gostávamos que ainda fossem e deixámos lá ficar esses objetos, tentando fazer perdurar a infância.
Cada um vai delimitando o seu espaço, vamos descobrindo que a nossa casa pode ser confortável e de todos. Que podemos estar nela sem nos atropelarmos e também sem precisarmos de invadir, em cada momento, a vida dos outros.
A casa representa o local de proteção e segurança, onde crescemos e criamos uma base de confiança para lidar com o mundo. Afastamo-nos dela para viver lá fora, com os outros, mas gostamos de sentir que podemos voltar. A casa que construímos para nós e a nossa família configuramo-la à nossa imagem e à imagem daquilo que recebemos, embora possamos não nos dar conta disso. Ao longo da nossa vida é o sítio onde retemperamos forças, onde nos encontramos com o que sentimos que é nosso. É também o local aberto, onde recebemos os familiares e amigos e deixamos que vejam uma parte da nossa intimidade.
Então, a casa partilhada das famílias pode ser como um organismo vivo, mas é muitas vezes mal habitada, porque não conseguimos que seja um local de encontro, estamos demasiado cansados, demasiado rotinados ou demasiado distraídos uns dos outros.
Na vivência desta pandemia, a casa pode ter sido aquela que mais ganhou, por ter sido renovada na sua qualidade de envelope protetor das pessoas e do todo familiar, como espaço de intimidade e como espaço da individualidade, quando cada um encontra nela o seu lugar e parte daí para a relação com os outros. Ficou diminuída como interface com o mundo fora de casa e fora da família, por muitos encontros zoom que possam ter sido feitos. A esse mundo vamos acedendo a pouco e pouco, precisamos tanto disso, como precisamos do encontro com o interior. Será esse equilíbrio que podemos conquistar, agora?
Imagem: fotografia de Carolina Piçarra
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