Algo diferente e profundamente inquietante se instalou no meu amplo e novo consultório. Foi depois de um estranho fim de semana de Março, onde a agitação da cidade, que lá em baixo se avista, ficou reduzida a um deserto de vento silencioso. Os cães que corriam soltos no imenso parque de estacionamento e onde os carros estavam inexplicavelmente ausentes deram-me o sinal. Hitchcock, o mestre do suspense, parecia ter-se apoderado do enredo: o enorme edifício de escritórios estava sem vida, e na praça que contemplo, habitualmente agitada, somente os semáforos continuavam a reclamar ruidosamente a presença de uma multidão agora inexistente. Percebo então a postura dos poucos corpos fugidios que ainda alcanço, retraídos, distantes e apressados.
Ao telefone, a trabalhar, as palavras hesitam em sair, e a escuta escureceu subitamente. Notei a tranquilidade falaciosa na minha voz, contrastante com a inquietude que ouvia do paciente. Calei-me, num silêncio frio. Silenciei também a minha escuta analítica. E fui para casa, onde me senti confortável e em companhia. Ficou mais fácil recuperar aí a função identitária que reconheço ao meu trabalho, bem como algumas das capacidades analíticas essenciais.
Pouco experiente no remote analysis, rapidamente descubro potencialidades, e me interrogo no que estou capaz de oferecer. Surpreendo-me com as intensidades dos movimentos regressivos vividas por contacto telefónico (mais no telefónico do que na videochamada). É tranquilizante aperceber-me do reencontro com o objecto e função analítica no par analítico. Embora pontualmente me sinta assaltado pela fantasia de pertencer a um dos desconcertantes episódios da série Black mirror, onde num elegante jogo confusional vivemos diferentes níveis de realidade.
O trabalho com supervisandos, as reuniões com colegas, os seminários com candidatos rapidamente se organizam virtualmente. A intensidade das discussões é defensivamente apaziguadora, elaborativa, torna-se um precioso auxílio que se reflete num instrumento audaz e sensível com os analisandos. Os webinars, e as partilhas internacionais asseguram o reencontro com a identidade profissional. Bogotá, Bolonha, Boston, Londres ou Madrid, em muitas partes do Mundo, psicanalistas e amigos ficam digital e intimamente próximos. Descobrimo-nos entusiasmados na partilha, separados por milhares quilómetros. Nunca estive tão próximo de tantos em simultâneo, nunca me senti tão cúmplice e acompanhado no surpreender, no questionar, nas dúvidas, e no gerir da incerteza e dos receios.
Dirijo a Comissão de Ensino da Sociedade Portuguesa de Psicanálise desde Janeiro, que se viu forçada a rapidamente entrar na era digital. Novamente o conforto e auxílio do pensamento com os colegas. De forma notável, os seus membros partilham reflexões determinantes no assumir institucional sobre formação, supervisão, no acompanhamento de crianças, e outros temas. Vivemos circunstâncias muito especiais que exigem condições de excepção na nossa profissão. Temos presente que este período constitui também uma oportunidade privilegiada para aprofundar a reflexão sobre conceitos fundamentais da Psicanálise, no contexto da provável transição sociocultural que resultará da utilização generalizada do teletrabalho.
Em apenas duas semanas, através de uma parceria com uma importante empresa de telecomunicações, a Sociedade Portuguesa de Psicanálise organizou um acto notável de solidariedade, em que mais de 70 psicanalistas promovem, sem qualquer retorno monetário, uma linha telefónica aberta de apoio à comunidade. Os psicanalistas portugueses unem-se num esforço entusiasmante, partilhando experiências, metodologias, problemas, e gratificações, indiferentemente da categoria hierárquica ou idade. Foram mais de 1000 atendimentos telefónicos no primeiro mês de funcionamento.
Com um breve período de adaptação, rapidamente são retomados quase a totalidade dos acompanhamentos analíticos. Em consulta, isolado do Mundo pelos phones do meu celular, recrio a melodia do movimento de cada paciente, a secreta espécie de dança corporal que ocorre no cumprimento e o cheiro único que cada um me traz. Por vezes, a nostalgia do agora longinco settingtradicional invade-me. Reencontrei-me com os trabalhos de René Spitz, elaborados em tempos muito difíceis, da II Guerra Mundial, em que o toque e a proximidade humana ganharam uma relevância extraordinária.
Estou confortável, bem de saúde, a trabalhar intensamente no escritório da minha casa, em consultas, supervisões, reuniões e debates científicos, e consigo ainda ir disfrutando de um tempo em família que se impos de forma prazerosa. Mas, após o sobressalto inicial das primeiras semanas, a Náusea de Jean-Paul Sartre visita-me, num sentimento de aborrecimento geral que me preguiça, retira curiosidade, e teima em tornar-me algo apático. Receio tornar-me mais benevolente com a limitações impostas pelo confinamento, descobrir-me mais gratificante para com pacientes e suas habituais resistências ao processo analítico, e desencontrar-me com a função analítica.
Resguardo-me no trabalho onírico dos pacientes, onde me (re)descubro como analista, e recupero o interesse entusiasmado.
Em breves semanas vivemos meses, anos ou décadas. Fica tão longe o distante Fevereiro! Há uma deformação hiperbólica da dimensão espaço-temporal que parece condensar e distorcer a nossa organização da localização interna de pensamentos e emoções.
É necessário recuperar a identidade da nossa função que facilita o contacto com comunicação inconsciente e sexualidade infantil dos pacientes.
Este será também o tempo de novas oportunidades, para compreender o sofrimento da solidão de quem vive com medos, com desconforto, com fobias sociais, entre tantas outras problemáticas. Esta irrupção da realidade obrigará o Ser-Humano a organizar um novo balanço e sensibilidade para duas áreas fundamentais da sua existência: o trabalho e a casa, ou a Economia e a Humanização. E será também um novo lugar que a Psicanálise e o seu conhecimento deverá saber ocupar.
Texto original publicado no Internal Bulletin da British Psychoanalytical Association, June 2020
Imagem: foto do autor
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