Imaginemos uma conversa entre amigos, adultos, alguns casados e com filhos. Todos com empregos estáveis e até há quem tenha cargos de chefia e de direcção. A conversa é dominada por uma desconcertante disputa em que cada um reclama para si o troféu de trabalhar mais horas por dia.
Etimologicamente, a palavra troféu está associada aos despojos do inimigo vencido, simboliza a vitória. Mas que troféu é este, de que falam aquelas pessoas? Quais serão os desejos e fantasias inconscientes, que os motivam a querer ser o herói de uma vivência em que a subjectividade individual é entendida como fragilidade e inadaptação? Quais serão os verdadeiros custos para a sua vida interna? Quais as repercussões na vida interna das crianças que deles dependem para se desenvolver física e psiquicamente?
Recordo-me que vai ter lugar mais uma conferência sobre a Psicanálise e a Política. Na última conferência, em Maio de 2018, em Lisboa, com o tema Psychodynamics in Times of Austerity, foi clara a ligação entre os problemas de saúde mental e as políticas económicas e sociais actuais. A austeridade ligada à culpabilidade individual, à instabilidade social e laboral, à linguagem da “selva em que vivemos” com o consequente incitamento implícito a comportamentos que remetem para caçadores agressivos que têm de competir pela sobrevivência, origina o receio da aniquilação e a necessidade de agir. A ideologia dominante subjuga o dominado. Parar de agir é sentido como parar de ser. Num cenário global de instabilidade, incertezas e medo, a violência estrutural é internalizada pelo indivíduo. A impotência, a melancolia, a solidão e o desespero ganham terreno. O mundo passa ser a preto e branco. Cria-se um inconsciente colectivo em que as contradições do sistema, impossíveis de tolerar, são projectadas para o exterior e tornam-se terreno fértil para a paranoia, o que diminui drasticamente a capacidade de tolerar a diferença e a capacidade de pensar (se). Os estrangeiros, os outsiders, os diferentes, equivalem ao inimigo. Devem de ser aniquilados.
A IPA criou uma nova área de comités, em disponibiliza e incentiva a participação dos psicanalistas em temas da sociedade que estão indiscutivelmente relacionados com a política enquanto exercício de poder, organização social, direitos e deveres do ser humano. Ocorre-me que cada um de nós habita uma sociedade que, de alguma forma, ajuda a formar. E a psicanálise, enquanto motor de questionamento interno, que convida a olhar para dentro de cada um e a falar do que vê, pode e deve ter um papel activo. A organização psíquica de cada indivíduo também se apoia na organização das relações, na organização da sociedade. E apesar de o mundo externo não ser o objecto de estudo do psicanalista, ele existe interiorizado em cada uma das pessoas que nos procuram nos nossos consultórios.
Imagem: Guernica. Pablo Picasso (Pablo Ruiz Picasso) Málaga, Espanha, 1881 – Mougins, França, 1973 – Museu Nacional Centro de Arte Reina Sofia
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