top of page
Sofia Figueiredo

PSICANÁLISE E LIDERANÇA - reflexão sobre uma entrevista com o Prof. Kerry Sulkowicz*


Liderança e o conceito de “capacidade negativa”, de que modo se relacionam? Que lugar é este em que a pandemia de 2020 nos colocou, ao nível micro e macro, e a partir do qual temos vindo a elaborar emoções numa auto-análise contínua do individual e do colectivo? Quais as suas implicações na liderança? E o que melhor podemos esperar dos líderes no presente e no futuro?


O interesse em aprofundar o conhecimento nestas questões, e em expandir o pensamento acerca da Psicanálise aplicada à Liderança (tendo vindo a seguir atentamente o trabalho de colegas Psicanalistas com CEOs e líderes em geral, no mundo corporativo e na política) levou-me até um dos maiores especialistas em Liderança, o Prof. Kerry Sulkowickz, que tive o prazer de entrevistar, remotamente, enquanto se encontrava em Londres. Esta inspiradora conversa levou-me a algumas reflexões e associações que partilho aqui.


A “capacidade negativa” foi um dos conceitos que me surgiu à medida que conversava com Kerry Sulkowicz (2022) enquanto Kerry evidenciava na nossa conversa a importância da tolerância à incerteza que um líder deve ter.


É interessante pensarmos na origem deste conceito, que vem de uma carta do poeta Jonh Keats. Keats escrevia aos irmãos, George e Thomas, anunciando haver compreendido qual era o segredo que garantia a realização plena de um homem e o tornava, como ele dizia, a “man of achievement”. Este segredo era a capacidade de caminhar na incerteza, de deixar-se fluir através dos enigmas da vida, mesmo na dúvida. A esta resiliência, Keats designava por “capacidade negativa”. “Negativa” porque contraposta à necessidade positiva que reconhecemos em nós, de prever tudo e tudo saber.


Bion (1961) recupera este conceito do poeta introduzindo-o na psicanálise para descrever a capacidade de permanecer na confusão e na dúvida enquanto se escuta, sem precipitar-se para intervir cedo demais. No trabalho que Bion (1961) desenvolve com grupos vai-se dando conta de certas especificidades que o levam a criar o conceito de mentalidade de grupo, expressão unânime da vontade do grupo, à qual o individuo contribui por maneiras das quais ele não se dá conta, influenciando-o desagradavelmente sempre que ele pensa ou se comporta de um modo diferente daquilo que são os seus pressupostos básicos. Funcionaria de forma semelhante ao inconsciente do individuo. Impulsos que se desejam satisfazer anonimamente e a frustração produzida no individuo pelas consequências que para si decorrem desta satisfação.


Ao longo da sua teorização, Bion (1961) refere a possibilidade de futuramente haver um grupo melhorado que corresponderia à “esperança missânica”, e que seria um grupo capaz de atender às necessidades pessoais dos seus membros. Não será esta a “esperança missânica” que podemos viver nas lideranças do presente? em que o líder abandona o pedestal - que o coloca num lugar de distância emocional dos seus seguidores; coeso, sim, porque não há dúvida nem questionamento - para o líder próximo, capaz de pensar nas emoções dos seus seguidores, empatizar com elas, conter as emoções tóxicas (destrutividade do grupo) e transformá-las.


Há pouco mais de dois anos, Março de 2020, o planeta foi atingido por um enorme meteorito de incertezas, ambiguidades, medos e angústias, de um modo nunca antes vivido pelo colectivo, em que o que pensávamos que sabíamos deixou de ser como o conhecíamos, colocando-nos no lugar do “não-saber” daquilo que estava a acontecer. O que significava o vírus Covid-19, qual a sua narrativa; como poderíamos mitigar ou neutralizar a ameaça sentida ao nível micro e ao nível macro; foram algumas das questões que invadiram as mentes de todos nós, exigindo uma tolerância ao não saber.


As dimensões emocionais da liderança nestes últimos dois anos, atingiram, assim uma amplitude máxima. Se antes poderia haver uma ilusão na eficácia de uma liderança autoritária e distante, no presente ninguém mais acredita ou deseja isso. É urgente uma sintonia com as necessidades psicológicas e emocionais de todas partes interessadas pelas quais os líderes são responsáveis. Nunca houve um momento em que os líderes precisaram de ser mais flexíveis, mais tolerantes à incerteza e à ambiguidade do que durante estes tempos. E agora, agora, os melhores líderes desejam pensar a complexidade das emoções de um outro modo, e não há uma resposta certa, e isso é, ou vai sendo, reconhecido.


Kerry Sulkowicz salienta que os sinais de uma liderança eficaz e significativa são a aceitação contínua da incerteza e, na verdade, o poder dizer “não sei”. Esse é um dos pensamentos mais fortes que um líder pode expressar. Cultivar as práticas da escuta, espera e passividade em contraste com dirigir e fazer. Isso é importante. Empatia, parece quase desnecessário falar sobre o quão importante é, mas é realmente extremamente importante, não apenas para entender a variedade de experiências humanas que estão envolvidas nestes tempos complexos, mas também para criar vínculo emocional na relação os colaboradores e a comunidade, potenciando o sentimento de pertença. Os líderes que se destacam no lado humano e não no lado tecnocrático são aqueles em quem todos devíamos apostar, afirma Kerry.


Outro aspecto que nos parece de extrema importância em Liderança e de que fala Kerry Sulkowicz é a autenticidade. E o que significa um líder ser autêntico? Significa ser um líder capaz de dizer a verdade. Significa que um líder não deve ser arrogante, mas, de facto, mostrar humildade. Os líderes não podem ter todas as respostas. Diz-nos Kerry Sulkowicz que os piores líderes são os líderes que estão patologicamente certos de tudo. Os líderes que dizem: "Eu tenho todas as respostas, siga-me apenas. Eu sei. Eu sei tudo". E esses são líderes perigosos. Quando insistimos em acreditar que a própria estrutura fornece todas as informações de que precisamos corremos o risco de nunca saber aquilo que verdadeiramente não sabemos.


Os líderes podem mostrar-se vulneráveis ​​e admitir ter uma vida emocional em vez de serem como robôs. E esses são os tipos de líderes que precisamos, afirma Kerry. Os líderes que se tornam vulneráveis ​​precisam também de lidar com a sua própria ansiedade, e é aí que os psicanalistas podem ser muito úteis como consultores dos líderes e ajudando-os a pensar e regular os seus próprios estados emocionais, salienta Kerry Sulkowicz. Ser líder nos dias de hoje não é uma tarefa fácil. Lidar com a incerteza e a ambiguidade constantes. E as pressões sobre os líderes são enormes. Os líderes que podem beneficiar de alguma ajuda, e que a procuram efetivamente, são, maioria dos casos, os líderes mais eficazes, e não os líderes que acreditam que podem fazer isso sozinhos(aspectos narcísicos da personalidade).


A experiência no trabalho com CEOs, demonstra que os líderes que desenvolvem a sua capacidade de auto-reflexão, auto-análise, e que são autênticos criam empresas e /ou governos mais saudáveis, condensando valores fundamentais como um significado emocional, um sentimento de comunidade, pertença, e de prazer no próprio trabalho.


No presente e no futuro talvez os líderes estejam mais perto do novo grupo melhorado descrito por Bion, um grupo capaz de atender às necessidades pessoais dos seus membros. Pode ser uma pessoa ou uma “ideia” que salvará o grupo, na verdade, dos sentimentos de ódio, destrutividade e desespero em relação ao seu próprio grupo ou outro Bion (1961).


Líderes mais próximos das suas emoções /fantasias e das dos outros, com mais tempo e espaço de reflexão individual e colectivo. Talvez a liderança no mundo corporativo e político assuma a complexidade emocional, consciente e inconsciente, de que é feita, porque é com ela que se tem de lidar. Talvez este possa ser um “novo pensamento” (Bion, 1961) do mundo pós covid-19.


* Psiquiatra e Psicanalista, consultor de alguns dos CEOs mais conhecidos e respeitados do mundo, Professor na NYU School of Medicine e Presidente eleito da American Psychoanalytic Association.


Imagem: Shonagh Rae.


Referências Bibliográficas

Bion, Wilfred R. 1961. Experiences in groups. London: Tavistock.

Entrevista ao Prof. Kerry Sulkowicz (2022), por Sofia Figueiredo.


Comments


bottom of page