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Tomás Miguez

Poesia e Psicanálise - Conversa com Nuno Miguel Guedes

No dia 21 de Março assinalou-se o Dia Mundial da Poesia.


Para o poeta Jorge Luis Borges e segundo Lauro Reis, o propósito de um poema não é apenas o de significar seja o que for, mas o de causar algo no leitor que, ironicamente, ele não consiga colocar muito bem em palavras. Para Borges, ler poesia não é sobre comunicação. É sobre senti-lo. Algo muito familiar à experiência de fazer uma psicanálise.


A experiência de fazer uma psicanálise é, tanto para o analista como para o paciente, uma experiência profundamente emocional e íntima. No fim, algumas palavras não são esquecidas, mas o que permanece mais na memória é o ambiente vivido entre ambos. É uma experiência que, segundo Neville Symington,”… só pode ser comunicada a uma terceira pessoa de forma muito inadequada e superficial. É tão impossível transmitir o seu sentido a uma pessoa como o é tentar explicar a uma criança de oito anos de idade o que é estar apaixonado.”


A Psicanalista brasileira Ondina Pereira recolheu opiniões de pacientes que fizeram uma psicanálise. Refere que, “A primeira dimensão da cena à qual os depoimentos aludem é a sua dimensão ritual e poética, no sentido de que o rito e a poesia têm por função desfamiliarizar a realidade do senso comum, cotidiana, e introduzir em um contexto onde nossa fantasia do todo ganha terreno…”. Uma paciente disse “a minha sensação ao falar era a de que estava sonhando acordada…”, enquanto outra referiu que “eu permitia-me algo que não me permitia fora, que era uma certa fragmentação do meu mundo”. A experiência da psicanálise inclui assim uma dimensão poética. Ao analista e ao poeta, tudo o que é humano lhes interessa. Já Freud dizia que, “Seja qual o caminho que eu escolher, um poeta já passou por ele antes de mim.

Psicanálise e Poesia são processos de criação e revelação. Poesia vem do grego Poiesis, que significa criar ou fazer - criar a partir da imaginação e fantasia. A clínica psicanalítica visa criar uma experiência autêntica, criativa e transformadora entre analista e paciente, proporcionando ao último uma capacidade de sonhar as suas experiências emocionais, tolerando momentos prazerosos e dolorosos da sua vida.

Naturalmente uma análise requer um envolvimento emocional de ambos os intervenientes. Para o psicanalista e poeta Luiz Pinheiro, “…o poema e o processo psicanalítico, ambos não cumprem suas funções se forem apenas entendidos intelectualmente e não vividos. É a estranheza do desconhecido, o impacto estético, que experimentamos ao entrar em contato com o outro ou com uma obra de arte, que amplia a nossa capacidade de percepção do mundo psíquico e nos aproxima de nosso verdadeiro eu.”

E de facto, a linguagem poética tem um impacto emocional mais pleno do que a linguagem comum. Por exemplo, a frase “Caminho sem pés e sem sonhos” do poeta Daniel Faria, pode levar-nos a sentir e imaginar uma grande diversidade de emoções e situações, comparada com uma simples frase “Sinto-me deprimido”. Outro exemplo é este poema de Fernando Pessoa:


A criança que fui chora na estrada

Deixei-a ali quando vim ser quem sou;

Mas hoje, vendo que o que sou é nada,

Quero ir buscar quem fui onde ficou.


O Poeta, para a psicanalista Manuela Brazette, “revela com uma espantosa lucidez a dor da perda dos sentimentos profundos de criança, núcleo do seu verdadeiro self, em confronto com o seu falso self, pretensamente adaptado ao mundo exterior, mas que o Poeta considera igual a nada. Essa tristeza, esse sentimento de vazio, a depressão, são os sinais do verdadeiro self, escondido e protegido pelo mecanismo de defesa eficaz que é o falso self.

De facto, dizer um poema a um paciente pode ser mais útil para o trabalho analítico do que uma interpretação direta. As metáforas e a poesia induzem-nos mais facilmente a criar e elaborar experiências emocionais. E como dizia o poeta Manoel de Barros, “a poesia é a voz de fazer nascimentos.


A propósito de Poesia, conversámos com Nuno Miguel Guedes, um jornalista ligado ao universo da poesia. Nuno Miguel Guedes (1964) é jornalista e argumentista freelancer. É letrista. Foi corresponsável pela apresentação e programação dos encontros de poesia Poetas do Povo. Como divulgador de poesia, faz várias leituras e modera várias tertúlias. É autor de vários ciclos de programação cultural para a EGEAC.

É membro regular do colectivo de spoken word Lisbon Poetry Orchestra.


Qual a importância da poesia na tua vida?

Como leitor, sou praticante assíduo mas não em exclusivo. Mas devido a parte da minha actividade como divulgador, a poesia tem também uma parte prática que defendo como essencial.

Quando descobriste a poesia?

Difícil resposta. Durante a escolaridade li alguns poemas dos autores obrigatórios que me encantaram, com destaque para alguns sonetos de Camões. Depois, e por causa das músicas que ouvia, Baudelaire ou Rimbaud aos 15 e 16 anos. Mas o primeiro impacto estético terá sido com um livro chamado Exposição, um colectivo de dois poetas - João Miguel Fernandes Jorge e Joaquim Manuel Magalhães – e um fotógrafo, Jorge Molder, a partir da obra do pintor Edward Hopper. Tinha 16 anos e fiquei apaixonado pela poesia do João Miguel Fernandes Jorge.

A poesia "salva" as pessoas?

Não. Nem sequer as torna melhores. Trata-se de um prazer estético, um afago solitário. Desperta emoções várias, certamente, mas não “salva”, felizmente. Perguntaram um dia ao António Barahona, um poeta português contemporâneo, se a poesia era útil, ao que respondeu: "Não. E essa é a sua verdadeira utilidade.". Subscrevo em absoluto.

Há coisas que só se conseguem dizer pela poesia?

A poesia é uma arte da depuração. Portanto, se há coisa que vive bem dentro da poesia e que é bem dita é o silêncio, o que não é dito.

Falta poesia nos dias de hoje?

A realidade será sempre muito prosaica. Por isso irá sempre faltar poesia.

O que leva o poeta a escrever e o leitor a ler? Poderemos falar de uma “pulsão poética”?

Sobre o poeta terão de lhe perguntar. Mas sim, penso que terá a ver com uma necessidade de criar e comunicar com o Outro, que é comum a qualquer arte. A Elisabeth Alexander, poeta americana e professora de literatura, tem estes versos de que gosto muito: “Poetry (here I hear myself loudest) /is the human voice,/and are we not of interest to each other?”. O leitor é o Outro que quer ouvir essa voz que lhe é necessária.

Há algum poema que seja um dos teus favoritos?

Muitos, naturalmente. Gosto de muitos autores, de Camões a Cesário Verde a Philip Larkin ou João Miguel Fernandes Jorge, para dar apenas alguns exemplos. Mas gosto muito deste poema de Wislawa Szymborska, poeta polaca e Nobel da literatura. É o poeta a reflectir sobre o seu ofício e gosto de o ler alto sempre que sou chamado a isso e me perguntam o que é a poesia:


Alguns gostam de poesia

Alguns —

ou seja nem todos.

Nem mesmo a maioria de todos, mas a minoria.

Sem contar a escola onde é obrigatório

e os próprios poetas

seriam talvez uns dois em mil.


Gostam — mas também se gosta de canja de galinha, gosta-se de galanteios e da cor azul, gosta-se de um xaile velho, gosta-se de fazer o que se tem vontade gosta-se de afagar um cão. De poesia — mas o que é isso, poesia. Muita resposta vaga já foi dada a essa pergunta. Pois eu não sei e não sei e agarro-me a isso como a uma tábua de salvação.



Imagem: Fotografia do entrevistado


Bibliografia

Borges, J. L. (2017). Este ofício de poeta. Lisboa. Relógio D´Água.

Brazette, M. M. (1992). A Depressão como sinal do verdadeiro self. Acta Médica Portuguesa — 1992, nº 5. Lisboa. p. 581-582

Pereira, O. ( 2004 ). Psicanálise e Filosofia: uma relação entre experiência psicanalítica e atividade filosófica. Revista Psychê — Ano VIII — nº 14 — São Paulo — jul-dez/2004 — p. 109-122

Pinheiro, L. (2022). Psicanálise e Poesia: uma aproximação. Blog da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo. Disponível em https://www.sbpsp.org.br/blog/psicanalise-e-poesia-uma-aproximacao/

Reis, L. (2017). Este ofício de poeta. Lisboa: Relógio d´água. Disponível em https://formadevida.org/recensoes/125-jorge-luis-borges-2017-este-oficio-de-poeta-lauro-reis

Symington, N. (1986). A experiência analítica (Prefácio). Lisboa: Climepsi Editores.




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