Milhares de crianças são diagnosticadas com PHDA e sujeitas a abordagens terapêuticas com psicoestimulantes.
Não existe, contudo, marcador biológico da perturbação. A partir da realidade fenomenológica (comportamentos observados, anotados por pais e professores) infere-se uma realidade orgânica. Segundo este paradigma neurobiológico não se trata já de: está desatento, mexe-se desordenadamente, é muito irrequieto e impulsivo. Porque será? pergunta que implica investigação clínica e educativa e que admite possibilidade de mudança, a ideia de transitoriedade e de educabilidade. Trata-se de: “É um PHDA” (ou um “portador “de PHDA, como agora se vai dizendo) por isso está desatento, mexe-se desordenadamente, é muito irrequieto e impulsivo. Essencialmente, estamos confrontados com um modelo biológico a-histórico e a-social. As dificuldades do desenvolvimento deram lugar às dificuldades do “neurodesenvolvimento”. Simples? Confrangedor! O sintoma, comportamento expressivo que pede investigação é substituído pelo comportamento explicado em si mesmo; a investigação das causas (etiologia) é substituída pela nosografia; é atacado o sentido, o pensamento e a historicidade, as determinações intra e intersubjetivas, como se os comportamentos ocorressem num sujeito sem história, sem conflitualidade, isolado do seu contexto; reduz-se a criança ao seu comportamento, não dando atenção à globalidade do seu desenvolvimento na qual a perturbação se inscreve e que daria às condutas um significado diferente do simples défice; faz-se tábua rasa das investigações sobre o desenvolvimento e reaparece o dualismo entre o orgânico e o psíquico; mascaram-se as responsabilidades sociais, educacionais e familiares no mal-estar de algumas crianças e jovens. Amputado de uma dimensão essencial de si próprio, o sujeito é encerrado num modelo redutor e assim mais facilmente manipulável
Sabemos que é da interpenetração dos elementos internos e externos que surge o sujeito…e o cérebro. A instabilidade, a hiperatividade, o défice de atenção, isolados ou associados, correspondem a problemáticas muito diversas: da instabilidade normal, ligada à idade e à maturidade psicomotora, emocional e cognitiva, a estados emocionais transitórios em resposta a fatores relacionais e ambientais, às formas psicopatológicas. Todas elas pedem um entendimento que possa conduzir a uma proposta de intervenção fundamentada na investigação clínica: um atendimento psicoterapêutico da criança e/ou da família, um acompanhamento educativo diferenciado, algumas vezes um suporte da medicação dada a gravidade dos sintomas e o comprometimento da sua vida de relação.
Mas a instabilidade, a hiperatividade, os défices de atenção, interrogam também o nosso tempo:
Vivemos numa sociedade hiperactivada com défice de atenção às necessidades dos mais jovens? A adultos do imediato corresponderão crianças do instante? Que qualidade, consistência e continuidade dos acompanhamentos, próximos e alargados, estamos a oferecer desde as idades mais precoces? Que vinculações estamos a assegurar para a autorregulação das emoções? Que lugares estamos a deixar vazios da relação substituindo-a pelos écrans? Estamos a ser capazes de nomear o real e a educar para um progressivo diálogo com as coisas dificeis da vida e da relação com os Outros? Tornámo-nos mais intolerantes aos tempos de crescimento? Que urgência de respostas é esta que curto-circuita o pensamento, nas famílias, nas escolas, nas instituições, na sociedade?
O que nos aconteceu? E que adormecimento, que silêncio local é este, diante dos lobbies farmacêuticos e a hipermedicação da saúde mental infantil?
Imagem: Maria Teresa Sá
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