Vem este texto menor, qual edital furtivo, lembrar que a 17 de Setembro será apresentado, em Lisboa, na Culturgest, o espectáculo biopolítico Eu sou o Monstro que vos Fala, do filósofo Paul B. Preciado, voz incontornável da filosofia de género e da teoria queer.
Autor áspero de obras referenciais, Preciado publicou, em 2002, o Manifesto Contra-Sexual (de que existe edição portuguesa[i]), Testo Junkie: sexo, droga e biopolítica (2008), Pornotopia (2011), Um Apartamento em Urano (2019), Eu sou o Monstro que vos Fala (2020), e, em 2022, a monumental Dysphoria Mundi.
Em 2019, Preciado é convidado a falar nas Jornadas da Escola Freudiana, em Paris, dirigindo-se aos 3500 psicanalistas ali reunidos como um homem trans e uma pessoa de género não-binário. Intitulou o seu discurso de «Eu sou o Monstro que vos Fala». E escandalizou.
Mais tarde publicado em livro[ii], sobe agora ao palco na forma de monólogo lido a cinco vozes.
Texto violento, intimista e utópico, não diz respeito apenas aos psicanalistas — nem, tão-só, aos lacanianos —, mas antes a todos aqueles que são cindidos pelo que acontece.
De modo muito resumido, as traves-mestras da sua fala são as seguintes:
. O regime da diferença sexual em que assenta o paradigma psicanalítico não é da ordem natural nem simbólica, mas antes uma epistemologia política do corpo, historicamente situada, que se desenvolveu na época do mercantilismo colonial europeu.
. Esta epistemologia (que diz igualmente respeito à psiquiatria e à psicologia), binária e hierárquica, está em crise desde os anos quarenta do século passado. Em crise «devido aos movimentos políticos de minorias dissidentes, mas também em consequência do surgimento de novos dados morfológicos, cromossómicos e bioquímicos que tornam a atribuição binária do sexo mais conflituosa, senão impossível» (p. 64).
. Esta epistemologia dará lugar, daqui a não muito tempo, a uma nova epistemologia. Tal ficar-se-á a dever aos movimentos transfeministas, queer e anti-racistas, mas também às novas práticas de filiação e das relações amorosas. É urgente descolonizar o inconsciente.
E assim falou Preciado na sua imprecação, promovendo o vento e o caminho.
Não é este o lugar para uma discussão aprofundada acerca deste pensamento.
Porém, não chegará objectar a Preciado que este descura o lugar subversivo do freudismo — que se constituiu, aliás, como crítica da própria modernidade —, que oblitera o lugar emancipatório da psicanálise ou obscurece autores que, no pensamento psicanalítico contemporâneo, pensam em contramão.
Quanto a nós, não nos chegará, como é óbvio, continuar confortavelmente sentados no teatro histórico do Édipo e da família, sentados no inamovível aparelho, sem abertura às subjectividades contemporâneas.
E a uma psicanálise por vir.
Uma psicanálise por vir, como afirma Stéphane Habib, «é uma psicanálise que acolhe o que vem», dando-se assim um futuro.
Porque psicanálise é sinónimo de política. Convém trocar umas ideias sobre o assunto.
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