Há umas semanas atrás estive presente numa tertúlia sobre a saúde mental na pandemia, organizada pelos chamados “negacionistas”: os que negam a perigosidade do vírus e não aceitam as medidas impostas (máscara, higienização, confinamentos, estado de emergência, etc…), chegando mesmo a formular teorias da conspiração – “A fundação Bill Gates tem ligações com a OMS e com as grandes farmacêuticas que estão a fazer as vacinas; foi feita uma simulação de uma pandemia em Outubro de 2019 com um vírus imaginado que curiosamente era muito parecido com este… Sabe-se lá como terá surgido o vírus… talvez tenha sido fabricado como forma de enriquecimento de alguns…”
Se os entrevistados nesta tertúlia mostravam um pensamento isento e livre, condição necessária a poder pensar de forma rigorosa e verdadeira, já o entrevistador, mais do que procurar compreender de forma sincera e científica as repercussões da pandemia na saúde mental, tentava “puxar a brasa à sua sardinha” referindo uma “histeria coletiva da humanidade”, que se compreendia num “mundo fundamentalmente neurótico”, o que explicava a aceitação dos rituais de higienização pelos obsessivos, e do confinamento pelos fóbicos!
Ainda é cedo para falar com rigor sobre as dores pandémicas na saúde mental, e adivinham-se variados estudos nos próximos tempos, a maioria provavelmente com contornos estatísticos, de digestão imediata e pouco rigorosa, à semelhança do número de mortes, internamentos, etc.
Enquanto clínica e observadora do mundo à volta, eu diria que as consequências para a saúde mental são de duas ordens: as sequelas de uma alteração nefasta e abrupta da realidade do próprio – os que deixaram de ter trabalho e vêem-se sem forma de pagar as contas, os mais velhos e os solitários que ficaram isolados em casa, os que tiveram consultas importantes canceladas, aqueles que perderam pessoas queridas sem se poderem despedir, as crianças filhas de famílias disfuncionais que ficaram confinadas na violência e na negligência -, ou o sofrimento provocado pela contaminação excessiva do real pelo mundo interno, pelos fantasmas psíquicos projetados numa realidade nova, em parte desconhecida.
Se é certo que o medo da morte desencadeia as reações mais primitivas de sobrevivência – o pânico que enlouquece – é fundamentalmente o elemento desconhecido, o novo, o estranho, que para a mente humana é mais intolerável. O estranho gera angústia, a dúvida traz insegurança, perante uma realidade indefinida (seja a forma das nuvens no céu, sejam as imagens abstratas dos testes projetivos) a mente humana tem necessidade de completar o incompleto, de lhe atribuir um significado.
Na guerra, apesar do medo da morte, o inimigo está claramente identificado, havendo menos lugar para interpretações “enlouquecidas”. Perante um vírus invisível, e uma ameaça incerta, projetam-se os fantasmas internos: os obsessivos vêem a sua necessidade de controlo e os seus rituais de limpeza confirmados, os fóbicos escondem-se em casa e aceitam o confinamento com alívio, os paranoides vêem um vírus a cada esquina, e continuam a desinfetar as compras, mantendo-se socialmente isolados do resto da humanidade. Ou imaginam que o vírus foi criado em laboratório, e que a vacina traz um chip incorporado para nos controlar…
A maior dificuldade perante a dúvida – e o maior sinal de saúde mental – é aceitar/tolerar essa mesma dúvida à espera de que o conhecimento gradualmente preencha a lacuna da ignorância. Assim fala a ciência, assim falava o filósofo grego Sócrates. Assim fala também a técnica psicanalítica.
Como agir então perante a dúvida? Com bom senso, com intuição, com capacidade de confiar, mas sempre com algum grau de risco. Viver – e pensar – sempre foi, e continuará a ser, arriscado.
Fui uma das psicanalistas que teve oportunidade de colaborar na “Linha Vira(l) Solidariedade”, criada pela SPP, que, entre Março e Julho de 2020, atendeu chamadas gratuitas à população todos os dias das 8h às 24h. Se no inicio escutei as vozes da ansiedade, do medo, dos problemas familiares e do isolamento afetivo, rapidamente o vírus desapareceu do discurso e no seu lugar surgiram os sofrimentos antigos, uns porque o seu médico habitual já não estava no Hospital ou Centro de Saúde para os ouvir, outros porque tinham aberto os alçapões de vulnerabilidades antes encobertas com a vida externa, outros ainda porque encontraram numa linha telefónica gratuita a oportunidade de serem escutados incondicionalmente. Surgiram as depressões arrastadas, as roturas amorosas, os conflitos familiares, a doença mental à espera do regresso do médico.
Mas no consultório, a pandemia tornou-se uma oportunidade de descoberta: descoberta do significado – emocional e traumático infantil – da claustrofobia re-vivida com o confinamento; descoberta de poder estar sozinho e parar sem ficar deprimido; descoberta da capacidade de, após uma separação conjugal, sair com os filhos de casa dos pais e montar uma casa nova; descoberta de conseguir viver debaixo do mesmo teto com outra pessoa sem perder a identidade… Ou a descoberta de querer mudar de vida, viver no campo ou mudar de profissão.
Alguns questionam-se sobre o traumático da pandemia. Traumático, pergunto-me? Trauma, por definição, é ficar imerso numa realidade avassaladora e destrutiva sem recursos psíquicos para lidar com ela. Traumático são as violências, negligências e os pais enlouquecedores na infância. Traumático são os abusos sexuais e outras violências precoces. Traumático são a guerra e os campos de concentração…
Nenhuma criança, inserida num ambiente familiar “suficientemente bom”, vai ficar traumatizada por ter passado um ano a desinfetar as mãos e a ver as educadoras de cara tapada, como insistia um pai que assistia à tertúlia. E os adolescentes, mais dilacerados pelo confinamento, rapidamente souberam encontrar maneiras alternativas de socializar.
A pandemia de 2020 foi uma crise universal, que nos chegou de maneiras diferentes, na forma como afetou a nossa realidade externa e interna. Como todas as crises, destapou vulnerabilidades – sociais ou psíquicas – podendo por isso ser uma oportunidade de mudança, de transformação, de criatividade.
Oxalá saibamos aproveitá-la (individual e coletivamente) para um Ano verdadeiramente Novo.
Quanto ao “cansaço pandémico”, que nos afeta a todos, pela restrição constante da liberdade e das trocas relacionais, num mundo confinado e descorporalizado, recomendo imersão ocasional na vida cultural – dança, teatro, música – capaz de nos trazer de volta o corpo e o encantamento do humano.
Imagem: “Singular”, Louise Bourgeois, 1996 (Fotografia da autora – Exposição “Deslaçar um Tormento”, Fundação Serralves, Dezembro 2020)
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