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“Os olhos dos pobres”

Gilles Deleuze (1992) afirma que as questões com que a psicanálise se defronta são inevitavelmente políticas mesmo as que ocorrem no seio da família ou no interior do sujeito. Como seremos afetados enquanto cidadãos e psicanalistas pelos movimentos sociopolíticos onde grassa a intolerância da subjetividade e do esmagamento da alteridade? La Capra (2001) afirma que qualquer compreensão critica do nosso tempo deveria ter como ponto de partida uma teoria do trauma, assim como o historiador marxista Eric Hobsbwam (2012) que defende que vivemos na era dos acontecimentos traumáticos onde todos seremos seus sobreviventes, seus perpetradores e suas vitimas. Este “mal de vivre” foi pensado, desde os primórdios da psicanálise, por Freud mas, segundo Maria Torock (2001), nenhum pensador se dedicou a reflectir sobre este tema da Katastròfak, como o seu filho predileto Ferenczi. Contrapondo Freud a Ferenczi poderíamos afirmar que Freud estaria mais interessado na realidade psíquica e da representação e que Ferenczi estaria mais apegado à realidade do trauma e do não representável. Para Ferenczi o traumático não estaria no acontecimento em si mesmo, nem no seu grau de violência, mas sim no que se poderia dar ou não num segundo tempo. Nesse segundo tempo Ferenczi apela à importância do desmentido, à gravidade da afirmação de que nada aconteceu, de que não houve sofrimento e à importância do não reconhecimento como traumatogénico. Talvez nada melhor do que um poeta para nos ajudar a parar no local das nossas faltas e da possibilidade de reescrevermos a nossa cura, no reconhecimento da denegação “horizontal” das nossas fragilidades comuns. Refiro-me a Baudelaire (1869) no seu poema “Os olhos dos pobres”, descrevendo um dia passado com uma mulher por quem estava profundamente apaixonado. Sentado num café recentemente inaugurado no também recentemente inaugurado Boulevard Haussmann o poeta é despertado entre outras imagens pela chegada de um homem com duas crianças de colo que olha extasiado para a riqueza e exuberância do café. Olhando para a sua amada ele imagina compaixão no seu olhar, mas eis quando fica congelado perante a reação desta e do seu pedido “essa gente é insuportável, com os seus olhos abertos como cocheiras, será que poderia chamar o gerente para os expulsar?” De um momento para outro, aquele amor incandescente transforma-se num bloco de gelo, levando a que possamos dizer que, como Baudelaire, algumas posições ou falhas nos colocam perante o insuportável e imperdoável para as quais não há aceitação possível.

Imagem: The sleep of reason produces monsters (1797-1798), Francisco de Goya Y Lucientes, Spain (1746 – 1828)

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