Pesarosos e circuncidados, tão pouco instruídos e tão infantilmente edificados que na sua decrépita e lamentável ignorância ainda se atrevem a contrariar os novíssimos evangelhos e a não cumprir os esclarecidíssimos mandamentos das assembleias civilizacionais, grande parte dos homens continua a vislumbrar algumas pequenas diferenças entre o masculino e o feminino…
e, numa convicção tão antiga e tão questionável que os aproxima dos mamíferos paleolíticos, persiste em supor que tem algum ascendente sobre as mulheres…
(Fingindo acreditar nas suas próprias suposições e fingindo colaborar nas suas próprias simulações…)
entendendo por ascendência a postura social da tribo que os habita.
Analisando um pouco tão imprópria atitude, que historicamente encabeçou irrespiráveis climas de afirmação e (ir)recuperáveis abusos de dominação, facilmente se lhe percebem medos reprimidos e desventuras encapotadas, que em navegações à toa lhes acinzentam percursos e condicionam recursos, sem eficazes farmácias censoras nem mentalizações compensadoras.
Cavalgando esses medos também se percebe que serão as tais irritantes pequenas diferenças, na irresponsável complexidade dos seus apelos e chamamentos, que refractários os tornam relativamente às doutrinações em acelerado processo de beatificação. Percebem-lhes os prejuízos, mas, funestamente, também lhes percebem os atractivos.
As pessoas bem formadas, hoje, garantem que sem essas diferenças todas as humanas relações seriam pacificamente abençoadas e globalmente enaltecidas. Libertas das inadmissíveis preponderâncias sexistas, económicas, administrativas, racistas ou outras que porventura alguém recapitulasse, o Paraíso voltaria e todos seríamos finalmente felizes.
Mesmo ressalvando que as clássicas e peremptórias hierarquizações apenas subsistem nas organizações que dão pelo curioso nome de irmandades, religiosas ou militares, ou seja, nas confrarias celestialmente qualificadas e nas casernas superiormente fardadas para julgar, sancionar e reprimir sem balança nem medida…
(Nas casamatas do meu bairro, nos conventos da minha agregação, grosserias comparativas jamais aconteceram, garantem os amigos dos amigos…)
destas observações resulta, sobretudo, um discreto aforismo que toda a gente sabe mesmo quando diz não saber:
(Toda as aproximações da sexualidade comportam desejo e medo… desejo de partilha o outro em si, medo de não corresponder à intensidade do desejo…)
caracterizador de todas as singularidades, mesmo das judicativamente mais enriquecidas, apenas esvaziado naqueles breves surtos psicóticos que na Idade Média eram conhecidos pelo desusado e anacrónico termo de paixões.
De facto, todos os homens têm e terão medo das mulheres, salvo os que por medo excessivo com elas se identificam e nelas se transformaram.
Nem todos disso terão consciência, mas em tão perigosas proximidades funcionam sempre duas incómodas ratoeiras: medo de serem vencidos pelos competidores, medo de serem rejeitados pelos seus amores e desamores, num baraço que a vida lhes complica.
Há labirintos onde correm o risco de serem devorados, mesmo com sinalizações permissivas.
Se tais interioridades se resolvessem, a maioria das ascendências e ostentações, até das importunações e tentativas de captura, deixariam de fazer sentido. Honradamente desapareciam, na savana, na Net, na praia, ou no Tibete. Reduziam-se euforias, esgotavam-se represálias, dissolviam-se encomendas, mas estas de alegrias ou tristezas não dependem. Enraízam-se na construção da identidade e nas obliquidades que porventura se entrecruzem.
É por isso que a solução final jamais acontecerá.
Somente nos grupos superiormente qualificados e merecidamente escolhidos para na sua infinita sapiência legislarem sobre o que somos, seremos e teremos de ser, tal possibilidade se admite plausível. Grupos que, nas suas jurídicas partes aos humanos retiram aquelas suburbanas ondulações a que os maus costumes chamavam erotismo e que, acima de tudo, interditam aquela provinciana vulgaridade a que os antigos chamavam sedução ou envolvimento sedutor…
(Impondo sexualidades por correspondência em toques de power point, anulando o magnetismo dos corpos e a beleza das imaginações…)
ensinando-nos agora a devidamente proceder e a prazenteiramente obedecer, sob pena de infames delinquentes nos considerarem e de nas suas inquisitoriais fogueiras acabarmos derretidos.
Convirá lembrar, no entanto, que relacionar-se num formato de pertença exclusiva e num desejo imperativo e tirânico faz parte do imaginário de todos os seres humanos, homens e mulheres. Tão peculiar desdita, talvez mais acentuada no masculino, resulta da tremenda vinculação mãe-filho e da inexorável luta pela sobrevivência de todas as pradarias, mau grado todas as escolaridades, legislações ou águas bentas.
A capacidade de adiar o cio e de o transformar em desejo, evolutivamente adquirida, perenizou tal condição, sob pena de não saberem quem são e de não se reconhecerem na própria pele. Só juízes de fora lhes travarão os excessos e malformações.
Mais altos, mais fortes e mais brutos por condição física, endócrina e psicossocial, teimosamente afastados dalgumas sensibilidades por insciências primordiais, eles sempre se supuseram vencedores numa condecoração auto-atribuída e pelos corpos cavernosos recomendada, prioritariamente ao sexo dirigida.
Depois daquela história da serpente no Paraíso, todos os homens sorrateiramente endeusam o pai e com ele se identificam. Como filhos da mãe se movem e promovem, na certeza de que sem um nem outro nem sequer existiriam. Nas dunas, nas barracas, no Dubai, no casarão, todos receiam que os outros homens, sobretudo os mais carismáticos e pretendidos, pelo buraco da fechadura lhes cobicem a mulher (a chamada “mulher do próximo”) e lhes espreitem as competências e incompetências verticais ou horizontais…
(Todas as Ordens do Tosão Dourado, todos os cabotinos deste mundo, todos os Angelinos Pavões das marés vivas, no “Sonho de uma Noite de Verão” de Chagall (1939) se forjaram e forjarão…)
alegando-se protagonistas do caprichoso enlevo que serventuários os torna.
Nas fidúcias sacramentais, nas amostragens sazonais, nos falatórios tribunalícios, nas aberturas vitivinícolas, todos se engrandecem nos seus cometimentos falados ou calados, muitas vezes nem sabendo ao que estão a referir-se.
Para além de liquidarem os intrometidos espreitadores, nas suas poderosas refregas consecutivamente vencem as parceiras galopantes, as colegas deslumbrantes, as amigas petulantes, as comadres respeitáveis, as vizinhas navegáveis, as passantes descartáveis, num assertivo desempenho que ninguém duvida nem escuta, apesar de com tanta gente por perto haver boas razões para imaginar que nem tudo corra bem.
Vencem os competidores e sobretudo vencem as mãezinhas que tiveram e sempre os consideraram vencedores de tudo e de todos (excepto delas próprias) e cuja autoridade absolutamente se subordinam desde o grito do nascimento até ao dia do juízo final…
mesmo que alvoroçadamente remexam os fantasmas de por elas serem censurados e não amados…
mesmo que despudoradamente afirmem as suas enormes capacidades de resistência aos respectivos abandonos…
mesmo que aflitivamente reconheçam que todas as mulheres lhes percebem as fraquezas (salvo, obviamente, as do grupo acima referido)…
mesmo que relutantemente concordem que o sexo das mulheres propriamente ditas, ancorado no local mais recôndito do Universo e de mais difícil acesso da humana corporeidade…
(Protegido pelos mais poderosos e mais “fisiológicos” músculos da anatomia conventual…)
jamais obedecerá a quanto queiram, requeiram, pedinchem ou requintem.
De facto, nesse longínquo e estranhíssimo local onde todas as inocências se camuflaram e todas as liberdades e clausuras se centralizaram, incluindo cinturões de castidade e masoquismos alternativos, todos os homens sabem que jamais vagueiam sem licença…
(Salvo nos construídos na fábrica da esquina ou no palco dalgum teatro, sem pai nem mãe que se saiba…)
relevando a importância das pequenas diferenças, mesmo porventura indexadas de platibandas decorativas, bandeiradas festivaleiras ou trapezismos representacionais.
Há inelutáveis destinos nos humanos encontros.
Imagem: “Midsummer Night’s Dream”, M. Chagall (1939)
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